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Putin e Netanyahu, o direito não é igual para todos? (Amílcar Correia)

A reação norte-americana e alemã são a enésima demonstração de hipocrisia e uma perigosa desvalorização do direito internacional

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Em março do ano passado, os Estados Unidos e a Alemanha foram lestos a aplaudir o Tribunal Penal Internacional (TPI) quando este emitiu um mandado de prisão contra o Presidente russo, Vladimir Putin.

O Presidente Joe Biden, embora os EUA não sejam signatários do Tratado de Roma, disse que o mandado era “justiçável”, pela prática de crimes de guerra, e o chanceler Olaf Scholz acrescentou que a acusação significava que “ninguém está acima da lei”. Não é verdade.

O mesmo tribunal emitiu mandados de captura contra o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, e o ex-ministro da Defesa Yoav Gallant — assim como contra o líder do Hamas, Mohammed Deif, que Israel diz ter matado —, mas as reações não foram iguais. Biden e Scholz acham que Netanyahu e Israel estão, em qualquer caso, acima da lei. A credibilidade política ocidental enterrou-se em Gaza e não será por causa dessa acusação que Israel vai deixar de receber armamento.

A reação norte-americana e alemã são a enésima demonstração de hipocrisia. Neste caso, são uma perigosa desvalorização do direito internacional, como se as vítimas das atrocidades não fossem todas iguais, como se o Governo israelita não estivesse a levar a cabo um extermínio insuportável.

Depois de acusado de crimes de guerra, Netanyahu tem dois objetivos. “O primeiro é convencer os israelitas de que os mandados internacionais não são contra ele pessoalmente, por causa da forma como escolheu travar a guerra, mas contra todos os israelenses como coletivo e como nação. O segundo é lançar uma guerra de destruição para desmantelar normas e mecanismos liberais amplamente aceites. Por outras palavras, Netanyahu pretende transformar o mandado de prisão do TPI numa moção global de desconfiança contra o direito internacional e as suas instituições”, escreveu Noa Landau, diretora adjunta do Haaretz.

Israel tem ignorado resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas, desafiado constantemente o direito internacional, ocupado territórios de forma ilegal continua confiante na sua impunidade. Netanyahu vai arrastar o seu país, que assiste com indiferença à catástrofe humanitária e ao agravamento do apartheid interno, para uma deriva sanguinolenta, que terá o seu lugar funesto na história.

Há muito que esta intervenção deixou de ser uma guerra de defesa, para se transformar numa vingança que o direito internacional não pode ignorar, como até o Papa Francisco reconheceu.

Quererão os israelenses esse lugar na história? Não se importam que Gaza e Cisjordânia sejam arrasadas e que os palestinianos morram à fome, numa prisão a céu aberto, na qual não entra assistência humanitária? Não poderão alegar que não sabiam.

A própria justiça israelense não está interessada no tema. Ainda nesta segunda-feira a procuradora-geral Gali Baharav-Miara decidiu não investigar se declarações de ministros e deputados podiam ser consideradas como um incitamento à violência ou mesmo genocídio. Dois exemplos: o ministro do Património, Amichai Eliyahu, defendeu que uma bomba atômica acabava com a guerra em Gaza e a deputada do Likud Galit Distel-Atbaryan apelou a que se “varresse Gaza da face da Terra”.

A próxima Administração de Donald Trump seguirá o óbvio princípio de tudo para Israel e nada para a Palestina. É de esperar que uma das consequências imediatas da política externa de Trump, ainda por cima com a escolha de Elise Stefanik para o cargo de embaixadora na ONU, seja um ataque aberto e feroz às Nações Unidas, ao direito internacional e ao multilateralismo.

Netanyahu conta com isso, com os problemas de consciência alemães, que restringem a liberdade de expressão a quem criticar Israel e com as divisões europeias, que terão tendência a acentuar-se, como se viu pelo convite de Viktor Orbán ao primeiro-ministro israelense para que visitasse a Hungria. A recusa de aplicação destes mandados é a declaração de óbito do tribunal e do direito internacional.

Na lógica de Netanyahu e aliados, toda e qualquer crítica à atitude desumana com que Israel conduz a sua intervenção no Médio Oriente explica-se pelo antissemitismo. O argumento não colhe, é falso e oportunista. O Governo israelita aplicou uma sanção ao jornal Haaretz, cujo publisher criticou o executivo de Netanyahu e que, em editorial, defendeu que “o Exército israelense está a levar a cabo uma operação de limpeza étnica no Norte da Faixa de Gaza”.

Qualquer semelhança entre isto e democracia é pura coincidência. O mundo arrisca-se a transformar-se numa grande Hungria. Orbán pode explicar como se faz. Ninguém como ele foi tão eficaz a destruir o Estado de direito.

 

(Transcrito do PÚBLICO)

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