Por coincidência ou não (por Mary Zaidan)
Bolsonaro insiste em expurgar o país do mundo democrático
atualizado
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Não basta colocar o Brasil “do lado oposto da maioria global”, como destacou a porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki, ao comentar a solidariedade derramada a Vladimir Putin, em meio ao recrudescimento da crise Rússia-Ucrânia. O presidente Jair Bolsonaro quer mais. Conspira cotidianamente contra a civilidade e empenha-se, com afinco, em expurgar o país do mundo regido pela democracia.
Depois da fotografia ao lado do déspota russo e da visita ao “irmão” ultra-direitista Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria, ele se prepara para receber o príncipe saudita Mohammed bin Salman, apontado como mandante do assassinato do jornalista do Washington Post, Jamal Khashoggi, em 2018.
Nada disso é coincidência.
Órfão de Donald Trump e sem qualquer interlocução com líderes importantes do Ocidente, Bolsonaro agarra-se aos que ideologicamente podem oferecer guarita. Para tal, não precisa de qualquer desculpa.
Visitar Putin é do jogo, algo que todos os presidentes brasileiros pós-democratização fizeram. Até porque a Rússia é uma potência histórica, embora responda por apenas 0,6% das exportações, ocupando o 34° lugar entre os países que compram produtos brasileiros. Muito longe da segunda posição dos Estados Unidos, responsáveis por 11% do que o Brasil exporta. E a anos-luz da primeiríssima China, aliada de ocasião de Putin, mas execrada pelo bolsonarismo de raiz. Como esquecer o “comunavírus”, o “vírus chinês”?
Para Bolsonaro, diplomacia é parte descartável.
Há muito está claro que as consequências da aloprada política externa exercida por seu governo pouco importam. Fora a obsessão por um segundo mandato para se autoproteger, escudar sua prole e alguns amigos do peito, Bolsonaro usa o exterior para falar para dentro. Foi assim nos fóruns internacionais de que participou e nos poucos encontros com líderes mundiais. Chegou a crer que poderia repetir aqui a tática de ditadores extremistas de esquerda e de direita, que usam instrumentos da democracia para atentar contra ela.
Essa foi a inspiração do frustrado golpe de 7 de setembro. Ali, Bolsonaro perdeu a batalha para se manter presidente sem disputar votos. A ideia era continuar com poder de mando a partir da destituição do STF, da nomeação de novos juízes para a Corte, da intimidação do Congresso, da criação de novas regras eleitorais e constitucionais. Uma cópia tosca da esquerda nicaraguense e venezuelana, da direita de Orbán.
Firmes no ricocheteio, o STF e o Congresso fizeram Bolsonaro e os seus guardarem suas armas no coldre. Mas se chegaram a parecer intimidados pela reação dos alvos, rapidamente retomaram o tiroteio na seara que dominam – redes sociais e dark web -, com um novo arsenal para os ataques de sempre. Uma lista infinda de apelações repetidas que vão da hiper-exposição do atentado à faca durante a campanha à falácia sobre a lisura das urnas eletrônicas, passando por notícias mentirosas que apontariam retumbante sucesso do presidente no exterior, falsos dados de pesquisas eleitorais e outras sandices.
Com a aprovação limitada a um quarto do eleitorado e uma rejeição difícil de reverter, Bolsonaro tem campo de atuação restrito. Sabe, até porque sempre foi fruto dessa cesta, que os neo-parceiros do Centrão vão sugá-lo ao máximo, secar e descartar o bagaço.
Não por acaso, retomou com vigor os ataques às urnas eletrônicas e ao STF, voltando a esticar uma corda que ele mesmo afrouxara após aconselhamentos de diversas pontas e intermediação do ex Michel Temer, além de reforçar os elos com a ala militar.
Para a “missão” eleitoral Rússia-Hungria, carregou todo o primeiro escalão militar – o ministro da Defesa, general Braga Netto, e os três comandantes das Forças Armadas. Todos tão dominados pelo chefe que se dispuseram a engolir mais alguns sapos: chegaram a ficar de pé enquanto o vereador Carlos Bolsonaro, sem qualquer delegação para tal, sentou-se à direita do (deus) pai em reuniões de Estado.
Agora, Bolsonaro se prepara para o príncipe saudita. Mais uma provocação contrária às matrizes civilizatórias e às crenças democráticas. Por coincidência? Óbvio que não.
Mary Zaidan é jornalista