Polícia Militar: Os Rangers brasileiros (por Felipe Sampaio)
Somos um exemplo típico de uma polícia cujo “braço forte” normalmente supera a “mão amiga”.
atualizado
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O uso de força bruta por parte das polícias é um dos assuntos mais antigos (e fundamentais) no campo da segurança pública. A população idealiza aquele tipo de policial duro com o criminoso que, ao mesmo tempo, seja solidário com o “cidadão de bem”. Esse pudim nem sempre sai conforme a receita.
No Brasil, a farda da polícia militar ainda inspira fascínio e esperança, justamente nas comunidades mais vulneráveis a todo tipo de privação socioeconômica, decorrente da indiferença histórica do Estado. É comum ouvir que “a PM é a polícia do pobre”. Acontece que, para muitos brasileiros, a polícia militar representa, de fato, a expressão mais próxima da existência de algum governo ao qual se possa recorrer na vida real.
Por outro lado, ainda hoje somos um exemplo típico de uma polícia cujo “braço forte” normalmente supera a “mão amiga”. É bem verdade que, por princípio, “o Estado é o detentor do monopólio da força”. Difícil é calibrar a intensidade dessa força no dia a dia da construção das sociedades.
Um caso internacional bem ilustrativo desse desafio foi o da antiga tropa policial norte americana conhecida como Rangers do Texas, cujos agentes entraram para a imaginação popular (e até para o cinema) como um modelo ideal do herói: cowboys bons no gatilho, duros com a bandidagem e gentis com a população. Era comum os garotos colecionarem gibis do ranger Tex Willer.
Os Rangers foram criados no estado do Texas para detonarem (literalmente) os criminosos e impor a lei no faroeste do século XIX. Durante a guerra civil americana, a maioria deles alistou-se no exército separatista Confederado. Nesse período, não foram nada cordiais com os civis. Tampouco foram elegantes nas campanhas seguintes contra os povos indígenas e, menos ainda, com as famílias mexicanas durante o conflito entre EUA e México no início do século XX.
Foram convocados novamente pelo governo texano para eliminarem bandidos famosos, como o lendário casal de assaltantes Bonnie e Clyde – emboscados e metralhados com 130 tiros pelos Rangers, em 1934. Logo depois os Rangers sofreram uma faxina administrativa para expurgar seus casos internos de corrupção, violência política e abuso de poder. Por fim, seus agentes restantes foram incorporados à nova polícia estadual do Texas.
Aqui na Terra da Santa Cruz as polícias militares estaduais vivem um processo que lembra os Rangers ianques, com cem anos de atraso. Em um Brasil onde quase 40 mil pessoas são assassinadas por ano, os policiais – atiçados por discursos de ódio – acabam despejando um volume de força bruta que atinge com frequência as pessoas que deveriam proteger (geralmente os pobres) e expõe o próprio policial ao risco de morte.
A polícia brasileira é uma das que mais matam (e morrem) no mundo. Segundo o portal SINESP da Secretária Nacional de Segurança Pública, só em 2024 mais de 5 mil pessoas (suspeitas ou inocentes) perderam a vida por intervenção da polícia, além de 170 agentes mortos em ação.
É obvio que a solução não passa pela recriminação da polícia como um todo, muito menos por dissolvê-la como aconteceu com os Rangers. Afinal, policiais são servidores públicos que batalham corajosamente na fronteira mais infame que pode existir – a da desigualdade social.
Cabe lembrar também que, no caso americano, a segurança pública passou por um amplo processo recivilizatório, com sistemas de controle interno e social, mas também com protocolos, tecnologias e políticas de carreira que qualificaram a profissão policial.
Felipe Sampaio: cofundador do Centro Soberania e Clima; atuou no setor privado; chefiou a assessoria do ministro da Defesa; foi secretário-executivo de segurança urbana do Recife; membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública; dirigiu o sistema de estatísticas no ministério da Justiça; é chefe de gabinete da secretaria-executiva no Ministério do Empreendedorismo.