Pandemia é antessala da mudança climática (Por Marcos Magalhães)
Uma boa parcela da humanidade já se deu conta de que as duas crises estão mesmo aí e que vieram para ficar
atualizado
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A quem criticava os parlamentares, ali pelos anos 80, o deputado Ulysses Guimarães costumava responder, do alto de seu sarcasmo: espere para ver o próximo Congresso! Um pouco do mesmo humor negro atualmente indica ser a pandemia apenas uma espécie de antessala de uma ameaça ainda maior que o mundo terá pela frente, a da mudança climática.
Deixando de lado os duplamente negacionistas, que não gostam de usar máscaras e acham essa conversa de clima um tremendo exagero, uma boa parcela da humanidade já se deu conta de que as duas crises estão mesmo aí e que vieram para ficar.
A pandemia já levou muitas vidas. Meio milhão só no Brasil. E é difícil prever quantas vidas ainda serão perdidas. A mudança climática também já começou a mostrar sua face ameaçadora, sob a forma de seca, enchentes, derretimento de placas de gelo e ondas inéditas de calor. Tudo isso colocando ainda mais vidas em risco.
E como os governos reagem a tudo isso? Depende muito do grau de desenvolvimento, da posição geográfica e até mesmo do nível cultural de cada país. Mas dois tipos de resposta têm se tornado mais frequentes, especialmente entre as nações mais ricas do Ocidente.
O que elas têm em comum é uma certa visão de futuro. Ou seja, uma forma de manter as populações seguras e o planeta habitável ao longo das próximas décadas. Ou, dito de outra maneira, um pensamento estratégico.
Relatório
Bom exemplo disso é o recente lançamento, pela Casa Branca, de um relatório sobre a resposta americana à dupla crise enfrentada pelo planeta. O título é ambicioso: “Construindo cadeias resilientes de suprimento, revitalizando a manufatura americana e promovendo o crescimento”, em tradução livre.
O documento, publicado neste mês de junho, reconhece a fragilidade atual dos Estados Unidos em setores essenciais da economia. E propõe caminhos para superar essas fragilidades, promovendo ao mesmo tempo crescimento e maior autossuficiência em relação a outros países.
“A pandemia da Covid 19 e o deslocamento econômico resultante revelaram vulnerabilidades de longa data em nossas cadeias de abastecimento”, observam os autores do relatório. “Os impactos drásticos da pandemia nos padrões de demanda por uma variedade de produtos médicos, incluindo medicamentos essenciais, devastaram o sistema de saúde dos EUA”.
O documento vai além ao ressaltar que, com a migração para o trabalho e o estudo em casa, criou-se uma escassez global de semicondutores, afetando vários setores da indústria. E que “eventos climáticos extremos agravaram ainda mais essa escassez”.
Para manter a economia funcionando, destaca o documento, o governo norte-americano precisa focar em quatro áreas principais: semicondutores, baterias de grande capacidade, minerais estratégicos e produtos farmacêuticos – inclusive os ingredientes ativos que se mostraram fundamentais à produção de vacinas.
Uma “cadeia robusta de fornecimento”, alerta o texto, deve incluir um ecossistema “saudável” de fornecedores. Por isso, além do fortalecimento da base manufatureira americana, o relatório sugere diversificar os fornecedores internacionais.
Afinal, recordam os autores, atualmente a China refina 60% do lítio e 80% do cobalto do mundo – dois elementos essenciais à fabricação de baterias, por sua vez indispensáveis ao funcionamento de carros elétricos, necessários à emissão de gás carbônico.
Europa
Os europeus também se preocupam com a insuficiência de chips e têm os próprios planos para estimular a indústria de base tecnológica no pós-pandemia. Como esses planos estão ligados à preocupação com a mudança climática, eles acabam incluindo propostas também destinadas à garantia de uma cadeia de suprimento – mas ao estilo europeu.
No caso americano, o governo demonstra especial preocupação com o fornecimento de minerais e de terras raras. A Europa busca desde já assegurar, além dessas matérias primas necessárias à fabricação de carros elétricos e produtos eletrônicos, o futuro fornecimento de um novo tipo de insumo: o hidrogênio verde.
A palavra verde está ali para deixar claro que o hidrogênio terá sido produzido sem emissão de gás carbônico. Ou seja, fontes renováveis de energia – como a eólica e a solar – serão usadas para quebrar moléculas de água e produzir o hidrogênio, que, por sua vez, poderá movimentar carros e caminhões ou mover indústrias de setores específicos.
E como países da América do Sul poderão se posicionar como fornecedores dessas duas amplas demandas das principais potências econômicas ocidentais? Produtores de minerais estratégicos a esta altura já devem estar atentos à procura americana. Mas as economias do subcontinente podem ter muito a lucrar também com a futura demanda europeia.
Poucos lugares do mundo contam com condições tão favoráveis para isso. Se a produção de energia renovável em alguns países se confirmar superior à demanda interna, estará aberto o caminho para a exportação de um novo tipo de insumo energético.
Verde
Há poucos dias, em debate promovido pelo Fórum Econômico Mundial, o ministro de Energia do Chile, Juan Carlos Jobet, disse a representantes de empresas internacionais de energia e consultoria que seu país está se preparando para exportar hidrogênio produzido a partir da energia dos ventos e do sol.
“Nós estamos provavelmente na pole position para produzir rapidamente o hidrogênio verde”, afirmou Jobet. “Mas esta não é uma competição entre países, e sim uma competição de nós todos juntos contra os combustíveis fósseis”.
O pequeno Uruguai pretende seguir o mesmo caminho, com base em sua abundante oferta de energia renovável – especialmente dos ventos. Ainda neste ano será montada uma usina piloto para produção de hidrogênio verde. E já tiveram início as conversas sobre possibilidades futuras de exportação para a Europa e o Japão.
“A vedete no Uruguai será o hidrogênio verde”, disse recentemente à publicação Energia Estratégica o presidente da Associação Uruguaia de Energias Renováveis, Marcelo Mula. “O país tem 97% de sua matriz elétrica renovável. É a matriz primária que temos para descarbonizar a economia”.
As oportunidades abertas no setor já foram tema do 1º Congresso Brasil-Alemanha de Hidrogênio Verde, que reuniu empresários e pesquisadores no ano passado. Em dezembro de 2020, especialistas do porto de Roterdã debateram com empresários cearenses a possibilidade de produção de hidrogênio no Complexo de Pecém.
Em maio deste ano, o grupo francês Qair iniciou, segundo o jornal Valor Econômico, estudos de viabilidade técnica e econômica de implantação de uma usina no porto de Suape, em Pernambuco, com investimento de US$ 3,8 bilhões. E tem planos também para o Ceará.
O Brasil sempre teve paixão pelo petróleo, há muito tempo chamado de ouro negro. Mas, com a crescente demanda mundial por novas fontes de energia que ajudem a descarbonizar a economia e a atenuar o aquecimento global, talvez seja o momento de prestar mais atenção a outro combustível.