Os universos distantes de Mujica e Trump (por Marcos Magalhães)
A política – à esquerda, ao centro ou à direita – ainda pode conter um pouco de civilidade
atualizado
Compartilhar notícia
Os dois são ex-presidentes, e as semelhanças param por aí. Unir na mesma frase Pepe Mujica e Donald Trump já soa mesmo um pouco estranho. Mas analisar o abismo entre o que os dois andam dizendo e fazendo por aí ajuda a entender aquilo em que se tem transformado a política.
E não é só pela enorme distância ideológica entre esses homens que já comandaram o pequenino Uruguai, com seus três milhões de habitantes, e os poderosos Estados Unidos, ainda a maior potência global, com seus 332 milhões de homens e mulheres.
Sim, Mujica foi um guerrilheiro na juventude e se elegeu em 2009 presidente pela Frente Ampla, um conjunto de forças progressistas uruguaias. Trump, segundo os critérios mais benevolentes, seria o maior expoente do que se costumou chamar de populismo de direita.
Os dois têm mesmo visões radicalmente diferentes sobre a economia, a política, as relações internacionais. Sem falar de temas como direitos humanos e meio ambiente, ou as futuras condições de vida no mesmo planeta em que vivem.
Até aí já seria o esperado, ainda que a uma potência mais elevada. As tradicionais políticas conservadoras do Partido Republicano foram empurradas para uma direita bem mais radical pelo ex-presidente que agora volta à cena.
As maiores diferenças começam, porém, pela forma como vivem hoje. Aos 88 anos, Pepe Mujica voltou a morar na pequena granja que tem perto de Montevidéu, onde se dedicou por muitos anos a cultivar flores e hortaliças.
Aos 77, Donald Trump não se satisfez com a vida boa na mansão do resort Mar-a-Lago, na Flórida, para onde se mudou após deixar a presidência e onde escondeu, segundo 37 das acusações a que responde, centenas de documentos sigilosos retirados da Casa Branca.
Pois é para lá, para a residência oficial do presidente dos Estados Unidos, a 1600 quilômetros de Palm Beach, que ele pretende voltar após as eleições deste ano. E tem demonstrado que quer pavimentar o caminho com um rolo compressor.
O governador da Flórida, Ron de Santis, já jogou a toalha. Disse que, apesar das divergências, vai apoiar o ex-presidente nas primárias do Partido Republicano. Agora só resta pelo caminho Nikki Haley, ex-governadora da Carolina do Sul, que promete ir até o fim na disputa.
Derrotado na tentativa de obter um segundo mandato, em 2020, Trump fugiu do padrão de outros ocupantes do cargo. Barack Obama, por exemplo, ficou oito anos na Casa Branca e hoje participa de documentários sobre o mundo do trabalho e o meio ambiente.
Trump não aceitou a derrota e foi acusado de estimular o quebra-quebra promovido em Washington por seus seguidores mais inconformados. Agora pretende voltar ao poder, e o mundo inteiro prende a respiração à espera da decisão dos eleitores americanos.
No pequeno Uruguai, Mujica voltou a andar em seu fusquinha e distribui sorrisos e conselhos a estudantes que o convidam a conferências em diversos países da América do Sul. Longe do poder, ele mostra também por meio das palavras um raro estilo no mundo da política.
Em livro recente, O Horizonte, ele e o também ex-presidente Julio María Sanguinetti, igualmente de 88 anos e do tradicional e conservador Partido Colorado, trocaram ideias e impressões sobre a vida e a política no seu país.
“Você pode ser um presidente, pode ser o que for, mas sempre será uma pessoa como outra qualquer”, disse Mujica na entrevista que deu origem ao livro. Na mesma conversa, ele responde à costumeira pergunta sobre seus modestos hábitos de vida.
“Para mim, a frugalidade é uma maneira de viver, é uma luta para manter uma ampla margem de liberdade”, definiu. “Porque se eu deixar que as necessidades se multipliquem ao infinito, tenho que viver para cobrir essas necessidades e não me sobra tempo para fazer as coisas que me motivam”.
Na outra ponta das Américas, Trump parecia estar apenas se guardando para quando chegasse a nova oportunidade de reverter a derrota eleitoral. Nos últimos meses ele tem subido o tom de suas já costumeiramente ácidas declarações, seja nas cortes onde responde a dezenas de processos ou em reuniões políticas.
Há poucos dias, em apelo à Suprema Corte dos Estados Unidos, Trump previu que haverá “caos e confusão” caso não possa se candidatar mais uma vez à Casa Branca.
Ele apresentou o apelo por temer a repetição, em outros estados, do que ocorreu no Colorado, onde a Suprema Corte proibiu a presença de seu nome nas cédulas.
A Constituição do Colorado veta a participação em cargos públicos de pessoas acusadas de envolvimento em insurreições como a invasão ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021.
O apoio velado de Trump à invasão do Congresso dos Estados Unidos mostra que o caos e a confusão podem mesmo estar em seus cálculos políticos. Tudo pode valer para que ele finalmente retorne ao lugar de onde acha que não deveria ter saído.
A má repercussão das mais recentes declarações do ex-presidente já levou publicações conservadoras de países aliados europeus a advertir para os perigos de uma nova administração de Donald Trump. Perigos econômicos, como a volta do protecionismo, ou geopolíticos, como uma aproximação de Washington com Moscou.
Nada disso chega perto de inibir uma nova candidatura do ex-presidente, é claro. Mas a repercussão desse início do processo eleitoral americano mostra a dimensão dos desafios que estarão à frente.
A truculência de Trump parece já fazer parte dos cálculos de observadores espalhados pelo mundo. Seu comportamento agressivo aos poucos se torna como que naturalizado. E ganha seguidores como o anterior ocupante do Palácio do Planalto.
Ninguém esperaria de Trump que se dedicasse a cultivar flores ou reflexões de vida, como tem feito Pepe Mujica. Ou mesmo que abrisse mão de suas mansões e carros de luxo. Há um enorme oceano entre os dois, nas ideias e no modo de vida.
O exemplo que nos chega do Sul, porém, nos serve pelo menos para lembrar que a política – à esquerda, ao centro ou à direita – ainda pode conter um pouco de civilidade.