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Os sonhos ainda não envelhecem (por Marcos Magalhães)

A letra de Clube da Esquina 2 se engaja na luta pela liberdade, pelo direito de escolher seus representantes e contra a desigualdade

atualizado

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desigualdade social
1 de 1 desigualdade social - Foto: Agência estado

Era o fim da tarde de domingo, uma semana antes de se fecharem as zonas de votação em todo o país, quando um sorridente Milton Nascimento, a bordo de um carro à beira-mar, contava a história do “moço que também se chamava estrada, viagem de ventania”.

O vídeo da conversa circulou na manhã de segunda-feira, em seu perfil nas redes sociais. Aos 81 anos, ele recordava o nascimento da canção, ainda apenas instrumental, parceria sua com Lô Borges.

E também como ela ganhou letra de Márcio Borges e o nome de Clube da Esquina 2, após pedido de Nana Caymmi. Pois foi Nana quem primeiro a gravou em seu disco de 1979, lançado quatro meses antes da Lei da Anistia, preâmbulo da abertura política.

Depois a canção ganhou o mundo na voz de Milton Nascimento, que a repetia como um mantra de liberdade e justiça quando ele mesmo, para se apresentar, ganhava as estradas em suas viagens de ventania.

“Porque se chamavam homens também se chamavam sonhos”, cantava Milton, naqueles tempos em que o ar era mais denso que o das atuais queimadas espalhadas pelo país. “E os sonhos”, prosseguia, “não envelhecem”.

No máximo, admitia, “em meio a tantos gases lacrimogênios”, eles ficam “calmos, calmos, calmos”. Não precisava dizer mais, naquele tempo de metáforas. A poesia encontrava suas brechas para dizer o que precisava ser dito.

Pois na mesma manhã de segunda-feira em que foi divulgado o vídeo, por vários outros meios também se publicavam notícias sobre um dos últimos debates antes do primeiro turno das eleições para a prefeitura de São Paulo.

Ali, na mesma cidade em que se reuniram centenas de milhares de pessoas nos comícios em favor da realização de eleições diretas, em 1984, em que opositores do regime militar traçavam os próximos passos para alcançar a democracia, o debate agora era outro.

Os ouvintes do programa podiam ficar sabendo se um dos candidatos havia experimentado alguma droga em sua vida. Também eram informados que, na opinião de outro candidato, mulher que é mesmo inteligente não vota em mulher.

E por aí foram, entre socos e cadeiradas, os debates nesta que é a maior e mais rica cidade brasileira. E que já revelou para a política gente como Ulysses Guimarães, Franco Montoro, Mário Covas, Fernando Henrique Cardoso e o atual presidente Lula.

A baixaria não ocorreu por acaso. Foi bem planejada, como uma espécie de passaporte para o protagonismo. Pode ser que funcione. Em várias partes do mundo vêm conquistando espaço populistas de extrema direita.

Ainda no domingo a Áustria, terra natal de Adolf Hitler, deu ao Partido da Liberdade, de ultradireita, 29,2% dos votos, contra 26,2% dos tradicionais conservadores austríacos.

O populismo de direita já governa a Itália e chega perto do poder na Alemanha e nos Estados Unidos de Donald Trump. Para quem se preocupa com a saúde da democracia, essas notícias soam como um pesadelo tardio.

Temos falado mesmo muito em pesadelos. Basta lembrar das guerras na Ucrânia e no Oriente Médio, das onipotentes redes sociais e dos desafios da inteligência artificial. Sem contar as persistentes desigualdades sociais e as ameaçadoras mudanças climáticas.

E os sonhos? Se o microcosmo da eleição de São Paulo for um exemplo válido, eles andam escassos e modestos. Os poucos que são divulgados pelas vozes dos candidatos são rapidamente ofuscados pela mais recente intriga na campanha. Acaso?

Os sonhos que não envelhecem, de fato eternizados pela voz de Milton Nascimento, não foram descritos na canção. Nem precisavam. Eram tempos de resistência à opressão, que se espalhava pelos palcos, pelas ruas, pelas universidades.

A letra de Clube da Esquina 2 se engaja na luta pela liberdade, pelo direito de escolher seus representantes, pela construção de uma sociedade menos desigual e mais fraterna.

Esses sonhos ainda estão por aí, nos corações dos mais velhos que experimentaram tempos difíceis e dos mais jovens que não acreditam no poder do mindset. Mas andam dispersos e ofuscados pela versão mais reacionária do conservadorismo.

Em São Paulo, como nos demais 5567 municípios onde haverá eleições no domingo, é tempo de pensar no que queremos para nossas cidades e para nosso país. Os sonhos ainda podem nos despertar para a busca de um futuro mais justo e humano.

 

Marcos Magalhães. Jornalista especializado em temas globais, com mestrado em Relações Internacionais pela Universidade de Southampton (Inglaterra), apresentou na TV Senado o programa Cidadania Mundo. Iniciou a carreira em 1982, como repórter da revista Veja para a região amazônica. Em Brasília, a partir de 1985, trabalhou nas sucursais de Jornal do Brasil, IstoÉ, Gazeta Mercantil, Manchete e Estado de S. Paulo, antes de ingressar na Comunicação Social do Senado, onde permaneceu até o fim de 2018.

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