Os pobres são só desculpa (por Mary Zaidan)
Bolsonaro e aliados usam a fome de milhões como escudo e trampolim eleitoral
atualizado
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O presidente Jair Bolsonaro, o mesmo que há dois anos jurava aos correspondentes estrangeiros que “falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira”, garante que não fará “qualquer aventura” na economia minutos depois de desarranjar ainda mais as contas públicas. Paulo Guedes, ministro da Economia, é ainda mais patético. Diz que detesta furar o teto, mas precisa ajudar os mais pobres, uma categoria que ele sempre desprezou.
Guedes, detentor de US$ 9,5 milhões em paraíso fiscal, é aquele que dizia que o dólar mais alto era bom, porque na baixa “todo mundo” estava indo para a Disney, “inclusive empregada doméstica”. Mas, justiça seja feita, o ministro tem ideias criativas para aplacar a fome. Como a de aproveitar as sobras de comida dos restaurantes, “que estraga diariamente na mesa das classes mais altas brasileiras” para “alimentar pessoas fragilizadas, mendigos e desamparados”.
Agora, esses desvalidos se tornaram úteis.
Na Câmara dos Deputados, o Centrão tratou logo de, em nome dos miseráveis, aprovar a PEC das irresponsabilidades fiscais na comissão especial, incluindo o abusivo parcelamento de precatórios e as mudanças no cálculo do teto de gastos, de forma retroativa. Com isso, gera-se um saldo de R$ 89 bilhões para 2022, cerca de R$ 30 bilhões para os pobres e o restante como “folga orçamentária”, turbinando a campanha bolsonarista e as emendas parlamentares, boa parte delas secretas, destinadas a aliados. Uma festa.
Improvisada e com consequências gravíssimas – especialmente para os mais pobres, que sofrem mais os efeitos paralelos de inflação e baixo crescimento econômico -, a PEC deve ser confirmada no plenário das duas Casas legislativas. Afinal, do jeito falacioso em que a matéria foi apresentada, quem se negar a aprová-la será acusado de votar contra os pobres.
Por certo, nenhuma proposta de corte de gastos apareceu no debate. As mais óbvias, como tesourar as emendas do relator, cuja previsão é de R$ 20 bilhões, e os fundos partidário e eleitoral, que no ano que vem consumirão no mínimo R$ 3 bilhões, nem chegaram a ser cogitadas.
Mas há muitas outras gorduras, a começar pelos incontáveis subsídios concedidos pela União, que somaram R$ 346,6 bilhões em 2020, quando Guedes alardeou que os cortaria pela metade em 5 anos. Daria para montar um programa robusto, mas nada foi feito. Só a renúncia fiscal para zerar o imposto sobre armas custa ao país R$ 230 milhões ao ano. Sem contar outros absurdos para agradar a alguns: nada menos do que R$ 9,3 bilhões foram direcionados a adicionais de disponibilidade, ajuda de custo e aumento de soldo de militares.
Em um orçamento de cerca de R$ 1,5 trilhão não seria difícil achar R$ 30 ou R$ 40 bilhões para os pobres. Além das reformas administrativa e tributária, que renderiam alguns bilhões só com o corte de privilégios, poderiam ter sido feitas economias que parecem pequenas, mas que, somadas, seriam de extrema valia. Não só pelo valor de face, mas como indicativo (que nunca houve) do esforço do governo no sentido de se manter na linha.
Mais de R$ 146 milhões foram gastos só para dar o pontapé inicial nas notas de R$ 200 – a mais cara já confeccionada no país e que se conta nos dedos quem já viu uma. Junta-se aqui o desperdício de R$ 340 milhões para a compra e distribuição de cloroquina, azitromicina e tamiflu para montar o famigerado e ineficaz Kit-Covid, e os R$ 23 milhões pagos em publicidade para difundi-lo.
O pouco caso com o dinheiro do pagador de impostos fica escancarado ainda nas motociatas de R$ 3 milhões do presidente em campanha antecipada, nas viagens que ele faz para inaugurar obras já inauguradas, algumas mais caras do que a própria obra. Ou, exemplarmente, no tour de mil e uma noites de seu governo em Dubai – uma comitiva com 69 integrantes ao custo de R$ 3,6 milhões, com direito a foto do filhote zero três como sheik.
É indiscutível que o país necessita de fortalecer sua rede de proteção social, ampliando benefícios diretos como o Bolsa Família, e melhorando o acesso da população à educação e saúde, moradia, água e esgoto tratados, segurança alimentar. Mas fazê-lo dessa forma é não fazer. É usar a fome de milhões como escudo e trampolim eleitoral.
Mary Zaidan é jornalista