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Os ovos da serpente (por Marcos Magalhães)

A Europa ainda é uma referência na defesa da democracia e dos direitos humanos

atualizado

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Hugo Barreto/Metrópoles
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1 de 1 cobra - Foto: Hugo Barreto/Metrópoles

Uma Berlim em crise, em 1923, era o cenário do filme O ovo da serpente, de Ingmar Bergmann, que mostrava uma sociedade massacrada pela hiperinflação e cada vez mais dominada pela intolerância, antecipando o nazismo que se instalaria na Alemanha uma década depois.

A obra chegou às telas do cinema em 1978 como um alerta para os riscos de ascensão ao poder da extrema-direita. Um soco no estômago, como chegaram a descrever alguns críticos, quando a Europa celebrava vitórias.

Naquele final dos anos 1970, o Velho Continente já podia comemorar a chegada da democracia a três países que haviam sido paralisados pelo autoritarismo: Portugal, Espanha e Grécia. Aos poucos se preparava o terreno para o que depois veio a se chamar União Europeia.

Países com diferentes níveis de desenvolvimento e antigas rivalidades aos poucos construíram talvez a maior obra de engenharia política da história, marcada pela livre circulação de bens e pessoas e um nítido projeto de inclusão social.

Quanta diferença um século faz. A Europa tomada pelo extremismo a partir dos anos 1920 viria a enfrentar outra grande guerra, ser dividida entre oeste e leste, sobreviver a uma guerra fria e transformar-se em exemplo de bem-estar social, antes de mais uma vez ser ameaçada pela onda extremista.

A onda se formou ao longo de toda a costa do Velho Continente e deslizou sobre praias de norte a sul, espalhando agora diversos ovos da serpente, potencialmente capazes de disseminar incertezas pelos países da região.

A dimensão da onda pode ser verificada pelos resultados das eleições para o Parlamento Europeu, no último final de semana. Ainda que não tenham alcançado maioria, grupos de extrema-direita mostraram forte crescimento.

O Grupo de Conservadores e Reformistas Europeus (ECR) obteve 73 cadeiras no Parlamento Europeu. O Grupo Identidade e Democracia (ID), 58. Ou seja, juntos alcançaram 131, dos 720 assentos disponíveis.

Deixaram para trás, por exemplo, os Verdes, com suas 53 cadeiras, que foram a estrela em ascensão nas últimas eleições europeias. O outrora poderosos Grupo da Aliança Progressista conseguiu 135 assentos, apenas 4 a mais que os extremistas de direita.

As alianças mais importantes permanecem sendo da centro-direita: o Grupo do Partido Popular Europeu (PPE), com 186 cadeiras, e o Renew Europe, com 79. Com esse resultado, eles podem abrir caminho a um novo mandato à presidente da Comissão Europeia, Ursula Von Der Leyen.

Logo após as eleições, essa conservadora moderada prometeu conter a onda da direita radical. “Vamos construir um bastião contra os extremos”, disse Ursula.

O presidente da França, Emmanuel Macron, foi mais drástico: convocou eleições antecipadas para renovar a Assembleia Nacional pouco antes dos Jogos Olímpicos de Paris.

Na França, o grupo ID chegou em primeiro lugar nas eleições europeias, conquistando 30 cadeiras. Se a extrema-direita repetir o sucesso nas legislativas nacionais, poderá obter também o cargo de primeiro-ministro.

Com isso, o Reagrupamento Nacional, de Marine Le Pen, passaria a ser corresponsável pelos destinos da França. A Macron caberiam ainda as grandes decisões de política externa e defesa nacional.

Macron apostou alto. Caso Le Pen venha a se tornar primeira-ministra, por exemplo, caberá à líder de extrema-direita dividir com Macron também os ônus de governar um país como a França.

Porque até agora os extremistas europeus agem como populistas. Valem-se de ressentimentos da população contra a inflação, o desemprego e o aumento da violência – que muitos atribuem à crescente imigração clandestina – para alimentar a desconfiança nos governos e na própria democracia.

E a Europa, que durante décadas no pós-guerra viveu um boom econômico acompanhado de medidas contra a pobreza e a desigualdade, corre o risco de ver corroídos o estado de direito e as conquistas sociais.

Observadores filiados à direita dura argumentam que os governantes precisam ouvir a voz do povo, que pede uma guinada à direita. Pode ser. Mas cabe também aos governantes recorrer ao bom senso na tomada de decisões.

Afinal, a Europa ainda é uma referência na defesa da democracia e dos direitos humanos. Se sucumbir à tentação do extremismo, perderá mais um pouco do velho prestígio.

 

Marcos Magalhães. Jornalista especializado em temas globais, com mestrado em Relações Internacionais pela Universidade de Southampton (Inglaterra), apresentou na TV Senado o programa Cidadania Mundo. Iniciou a carreira em 1982, como repórter da revista Veja para a região amazônica. Em Brasília, a partir de 1985, trabalhou nas sucursais de Jornal do Brasil, IstoÉ, Gazeta Mercantil, Manchete e Estado de S. Paulo, antes de ingressar na Comunicação Social do Senado, onde permaneceu até o fim de 2018.

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