Os “mais humildes” (por Mary Zaidan)
Pobres não fazem parte do universo de Bolsonaro, nem mesmo do seu vocabulário
atualizado
Compartilhar notícia
Conquistar os pobres. Essa é a ordem no QG bolsonarista para tentar reverter os mais de seis milhões de votos de vantagem de Luiz Inácio Lula da Silva no primeiro turno. Tarefa dificílima para um governo que não criou qualquer política pública para redução da pobreza, tendo apostado exclusivamente na distribuição pré-eleitoral de dinheiro para atrair os votos desse público. Uma estratégia que, pelo menos até aqui, se demonstrou pouco eficaz.
Quem precisa não abre mão de auxílio – dinheiro, vale-gás, comida. Pega tudo e vota em quem fala a sua língua. O desempenho de Lula nesse segmento prova isso. Ele consegue traduzir valores que vão muito além da ajuda financeira: compreensão, respeito, humanidade.
Pobres não fazem parte do universo do presidente Jair Bolsonaro. Nem mesmo são admitidos em seu vocabulário. Refere-se a eles como “mais humildes”, sem qualquer noção, nem mesmo bíblica, do significado da humildade – algo que, definitivamente, ele desconhece e, por óbvio, não pratica.
Colocando as palavras no lugar certo. Os 33 milhões de brasileiros que têm fome não são “humildes”, são miseráveis. Tampouco são “humildes” os 30% que vivem na linha da pobreza, com R$ 447 ao mês, de acordo com pesquisa FGV Social. São pobres, paupérrimos. Muitos têm a grandeza da humildade, embora humilhados cotidianamente por gente que, como Bolsonaro, os trata como categoria inferior, incapaz.
Bolsonaro põe em dúvida o número de famintos, fazendo de conta que inexiste a multiplicação da miséria nas grandes cidades e no Brasil profundo.
Paulo Guedes, seu ministro da Economia, é outro que tem ojeriza aos pobres. Ao sugerir em uma palestra que os restaurantes distribuíssem sobras dos pratos da classe média para “alimentar pessoas fragilizadas, mendigos, desamparados”, ele também buscou sinônimos para não citar os pobres. Mais tarde, disse que tinha sido mal interpretado na sua vexaminosa ideia de combate à miséria, mas não conseguiu consertar a fala. Há pouco mais de um mês reincidiu: foi o primeiro a contestar os dados sobre insegurança alimentar do brasileiro.
Em resumo, para o governo Bolsonaro, pobres não existem nem nas estatísticas.
Ainda assim, Bolsonaro não consegue entender a equação que o coloca em desvantagem entre os pobres. Não admite a ingratidão dessa gente. Soltou dinheiro a rodo, e nada. Nem bem as urnas fecharam, anunciou a eleitoreira antecipação do cronograma de pagamento do Auxílio Brasil e as intenções de voto não se mexeram.
O mesmo acontece com as mulheres, maioria do eleitorado. Nos últimos dias – e só nos últimos dias -, o presidente se rodeou de mulheres em todas as suas aparições públicas. Recita a redução no número de feminicídios como se a queda se devesse a ele. Em entrevista à revista Veja, tentou remendos à “fraquejada” de ter tido uma filha em vez de mais um rebento macho, e ao entrevero com a deputada Maria da Rosário, quando disse que ela não merecia ser estuprada por ser “muito feia”. Um mea culpa de campanha eleitoral, tímido e tardio, que não convence.
Por mais que Bolsonaro multiplique benefícios como a promessa de 13º para mulheres inscritas no Auxilio Brasil, a ser pago depois das eleições (cuidado, ele teve três Natais para fazer isso e não fez), é pouco provável que consiga alterar o favoritismo de Lula entre elas. Pelos mesmos motivos que impedem qualquer desenvoltura entre os pobres.
Bolsonaro pode até melhorar sua performance eleitoral com a força da caneta e do discurso falacioso sobre costumes ou ameaças comunistas. Sem qualquer empatia – as famílias dos quase 700 mil mortos pela Covid que o digam -, restam-lhe apenas três semanas para se travestir como alguém sensível e generoso – atributos que lhe são estranhos.
Quanto à humildade, um pouquinho dela faria bem aos dois postulantes.
Mary Zaidan é jornalista