metropoles.com

Os demônios, Dostoiévski e o Brasil (por Felipe Sampaio)

Um iluminado de ocasião teve a ideia de proibir (no Brasil!) eventos que abordem a obra do escritor russo Fiódor Dostoiévski

atualizado

Compartilhar notícia

Google News - Metrópoles
Reprodução
Dostoiévski
1 de 1 Dostoiévski - Foto: Reprodução

Não bastasse a ocorrência de mais uma guerra, agora entre Rússia e Ucrânia, imediatamente outro desatino se apresentou para fazer companhia ao primeiro. É o caso da recente tentativa de ‘banimento’ de Dostoiévski.

Como sempre acontece em momentos de grande repercussão, um iluminado de ocasião teve a ideia de proibir (no Brasil!) eventos que abordem a obra do escritor russo Fiódor Dostoiévski.

A iniciativa expõe sua própria extravagância quando levamos em conta que não atinge um pensador contemporâneo de Putin, que o tenha convencido a invadir o país vizinho, mas sim de alguém que viveu no século XIX.

Na verdade, Dostoiévski sequer poderia inspirar o presidente da Rússia, porque em seus escritos (que não chegam a ser um manifesto socialista) valorizou a mistura entre os valores liberais, iluministas e cristãos ortodoxos, por sinal, distantes dos atos da república de Putin.

Seria menos espantoso que o governo russo banisse sua obra, do que fazê-lo no Brasil. Contudo, o disparate nos permite refletir acerca das afinidades existentes entre os dois absurdos.

No caso de Dostoiévski, a ‘deportação’ de sua memória (por alguns cafonas do intelecto brasileiro), a pretexto da crise na Ucrânia, revela a existência, entre nós, de demônios a quem o romancista provocara em um dos seus principais livros.

Ao escrever Os Demônios (título original: Biêsi, 1873), Dostoiévski não pretendeu dissertar sobre fenômenos espíritas, tão em moda no seu tempo, e tampouco tentou produzir algum ensaio no campo do exorcismo.

Os demônios a que se referiu inquietavam o povo de seu país no crepúsculo do czarismo e, diga-se de passagem, seguem assombrando a Rússia até hoje, mesmo após a meteórica Glasnost.

Em plena ascensão das democracias liberais e sob a efervescência contagiante da Belle Époque, os russos viviam também seu momento de ebulição cultural, animados pelos ecos do iluminismo.

A Revolução Gloriosa na Inglaterra, a Independência Americana, e os movimentos em torno da Revolução Francesa, encontravam correspondência em diversas partes do mundo, especialmente nas monarquias europeias e em suas colônias.

Na Rússia não foi diferente – até certo ponto – pois os demônios que frequentavam sua sociedade eram os mesmos que tiravam o sossego de outras nações. A diferença está no fato de que, nas democracias que sucederam o absolutismo, tais demônios perderam força, ou abrandaram suas feições.

Enquanto isso, os demônios russos permearam os governos que atravessaram o século XX, como a perseguição política, a censura, a ignorância, entre outros que marcariam as diferentes ditaduras mundo afora.

No Brasil de hoje, Dostoiévski facilmente enxergaria antigos (e novos) demônios. Possivelmente valeria para nós o parágrafo: “Esses demônios… são todas as chagas… que se acumularam na nossa Rússia (ou Brasil) para todo o sempre”. Certamente, por isso, e não por solidariedade à Ucrânia, alguns fãs de anjos decaídos ainda queiram devolvê-lo às prisões da Sibéria.

Em um tempo em que persistem, nesta Ilha da Vera Cruz, capetas como a desigualdade social, a devastação ambiental, o negacionismo, e outros da mesma legião, os recados de Os Demônios ainda metem medo no próprio satanás.

 

Felipe Sampaio – Ex-Assessor Especial do Ministro da Defesa (2016-2018); foi Secretário Executivo de Segurança Urbana do Recife; colabora com o Centro Soberania e Clima.

Quais assuntos você deseja receber?

Ícone de sino para notificações

Parece que seu browser não está permitindo notificações. Siga os passos a baixo para habilitá-las:

1.

Ícone de ajustes do navegador

Mais opções no Google Chrome

2.

Ícone de configurações

Configurações

3.

Configurações do site

4.

Ícone de sino para notificações

Notificações

5.

Ícone de alternância ligado para notificações

Os sites podem pedir para enviar notificações

metropoles.comBlog do Noblat

Você quer ficar por dentro da coluna Blog do Noblat e receber notificações em tempo real?