O submarino Titan, uma angústia televisiva (Por Carmo Afonso)
As vítimas e os sobreviventes do naufrágio de Pylos não reúnem os requisitos que prendem as televisões
atualizado
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O interesse na história do submarino Titan, da OceanGate Expeditions, que está desaparecido desde domingo, é enorme. Sabemos que as reservas de oxigénio já acabaram, de acordo com as previsões da Guarda Costeira dos Estados Unidos. Tinha uma autonomia de 96 horas após o fecho da escotilha. Ouvimos os testemunhos da ansiedade de vários amigos e o relato de ex-passageiros que consideraram que um acidente era provável.
Já sabemos quem são os cinco passageiros e até que a mulher de um deles, Wendy Rush, é trineta de um casal de milionários que morreu no naufrágio do Titanic, precisamente o casal que, no filme, se abraça na cama enquanto o nível da água sobe na cabina. Chamavam-se Isidor e Isa Straus e eram um casal famoso.
O marido de Wendy, Stockton Rush, é o diretor executivo da empresa proprietária do Titan e era ele que pilotava o submarino nesta expedição. Numa entrevista ao jornalista David Pogue, da CBS, tinha afirmado que a segurança pode ser puro desperdício e que existe um limite para as preocupações com ela. Quem quer estar seguro não deve sair da cama, entrar no carro ou fazer alguma coisa. Foram palavras suas. A reforçar este espírito de aventura, o despedimento recente de um especialista, David Lochridge, por este ter alertado para problemas de segurança no submarino: na sua avaliação, o submarino não estava preparado para mergulhar numa profundidade superior a 1300 metros. Veja-se que os destroços do Titanic estão a 3800 metros de profundidade.
Querem mais detalhes? Eu tenho e foi muito fácil. A comunicação social está altamente debruçada neste drama. É fácil conhecer a história daquelas cinco pessoas, o preço que pagaram para estar ali, os detalhes construtivos do submarino ou a extraordinária sofisticação dos meios de busca.
Acontece que, quase em simultâneo com o desaparecimento deste submarino com cinco pessoas a bordo, naufragou junto à Grécia uma traineira, vinda da Líbia, com 700 pessoas a bordo. Até ao momento, foram resgatadas com vida 104 pessoas e mortas 79. A grande maioria continua desaparecida e fala-se em 100 crianças entre elas. A quase simultaneidade das duas notícias permitiu estabelecer com clareza o impiedoso contraste com que elas foram tratadas pela comunicação social e o do interesse que mereceram da nossa parte. Neste contraste está espelhada a miséria coletiva que nos domina e que domina o mundo ocidental.
Há um vídeo que foi publicado no site do jornal The Guardian que mostra o encontro de dois irmãos, um deles sobrevivente do naufrágio, no Porto de Kalamata. Abraçam-se através de grades de ferro e choram. O sofrimento e a dor nos olhos do que sobreviveu ao naufrágio, um sírio com 18 anos, são inesquecíveis. Tinha acabado de passar pelo maior pesadelo que se pode conceber. Mas não teve direito a nada. Apenas a um abraço através das grades e a chorar. Não consegui saber mais nada sobre este rapaz que já é um homem.
As autoridades gregas não deixam os sobreviventes falar com a comunicação social e relatar o que viveram. O pouco que se sabe é perturbador. Terá sido a Guarda Costeira grega a tentar rebocar o barco de pesca e, na sequência dessa tentativa, o barco, com excesso de carga, desequilibrou-se e afundou-se. Há também relatos de sobreviventes a nadarem para longe do auxílio da Guarda Costeira, por acharam que estes guardas os iriam afogar. Não existe vídeo da interação do navio da Guarda Costeira com o barco que naufragou, como seria obrigatório.
As buscas por sobreviventes não mereceram atenção nem o uso de meios sofisticados. Sejamos claros: salvar estas pessoas e trazê-las para terra pode ser crime. Quem o faz não é recebido como herói e enfrenta processos judiciais como aconteceu com Miguel Duarte, o português que foi acusado pela justiça italiana de auxílio à imigração ilegal.
Chamam a estas pessoas migrantes, mas não sei se é justo e aceitável chamar migrante a quem arrisca a vida para ir para outro país. O desespero – mesmo que seja económico – deveria dar-lhes outro estatuto. Claro que é mais cómodo falar de migrantes. Torna-nos pessoas menos cruéis estes desgraçados não se chamarem refugiados.
Se isto é cruel? E discriminatório também? As vítimas e os sobreviventes do naufrágio de Pylos não reúnem os requisitos que prendem as televisões e que comovem a maioria dos portugueses. Ficou à vista. Preferem embarcar num submarino de aventureiros privilegiados.
P.S.: Morreram as 5 pessoas que estavam a bordo. Mortes que sentimos porque sabemos que aconteceram e não optámos por ignorar, como as que acontecem no Mediterrâneo.
(Transcrito de PÚBLICO)