O que significa hoje ser de direita ou de esquerda? (Por Juan Arias)
Política é ação, mas também é verbo e as palavras criam ou destroem
atualizado
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Escrevo do Brasil, mas poderia fazê-lo da China. Hoje o mundo encolheu e os problemas e a linguagem, principalmente através das redes sociais, estão se unificando.
Limitando-nos à política, precisaríamos hoje, por exemplo, de um novo Lacan capaz de eviscerar as velhas palavras esquerda e direita, conservador e progressista, moderno e antigo. As palavras ficaram tão petrificadas que acabamos nos enredando nelas como num labirinto sem saída.
E o perigo é que palavras até ontem vistas como sagradas ou demoníacas hoje acabam perdendo o sentido. A linguagem está mudando no ritmo da evolução do mundo. E ninguém pode duvidar que estamos num tempo de mudança radical, onde nem mesmo os melhores profetas são capazes de fazer um diagnóstico do que vai acontecer, não digo amanhã, mas esta tarde. E isso em todo o planeta.
E desde a criação do mundo, tudo começa com a linguagem, com as palavras às quais a Igreja, por exemplo, conferiu até uma força sacramental. O que significa “inteligência artificial” hoje, por exemplo, para ser a palavra da moda que nem os cientistas entendem bem?
Se essa força da linguagem é tão criativa, tão indispensável e ao mesmo tempo tão perigosa em nossas relações, também o é na política. Por exemplo, palavras como democracia, liberdade, direita e esquerda, conservador e progressista, fascista e nazista.
E se foram as palavras que criaram o mundo, serão também elas que o enriquecerão ou empobrecerão, que o santificarão ou demonizarão. Política é ação, mas também é verbo e as palavras criam ou destroem.
Nada tão banal na política quanto conservador e progressista, direita ou esquerda, democracia ou obscurantismo, liberdade ou escravidão. A linguagem é rica em palavras e significados, mas também petrifica, enquanto a realidade é criativa.
Ser esquerda ou direita hoje não é, por exemplo, em muitas partes do mundo, sinônimo de progresso ou obscurantismo, menos bom ou mau, moderno ou ultrapassado.
A força das palavras é tamanha que elas podem engendrar a paz ou a guerra. Um pai altamente politizado explicou ao filho que o coração está sempre “à esquerda”, que é onde estaria a vida. E, no entanto, ao longo dos séculos e até na Bíblia, a esquerda foi entrelaçada com aspectos negativos. Quando acordamos de mau humor, costumamos dizer que acordamos “com o pé esquerdo”.
Na Bíblia, seja judeu ou cristão, o justo está sempre à direita de Deus e o ímpio à sua esquerda. Como explicar, por exemplo, às igrejas evangélicas, hoje tão envolvidas na política, que para Deus somos todos iguais?
E não estamos falando apenas de linguística, pois as palavras acabam tomando o lugar dos fatos, da realidade. Hoje, quando a extrema-direita, sobretudo a fascista e a nazista, volta a levantar a cabeça por toda a parte para espanto dos democratas, também há um perigo à espreita: o de atribuir o conceito de conservador a essa direita divisora.
Na verdade, as coisas não são tão simples. Como escreveu Nicolau da Rocha Cavalcanti aqui no Brasil, no jornal O Estado de São Paulo, confundir conservador ou liberal com bolsonarista seria um grande presente para a extrema direita. Segundo ele, se ser conservador ou liberal em qualquer aspecto da vida, dos costumes às ideias, fosse sinônimo de direita, aqui no Brasil o bolsonarismo já teria vencido a batalha, visto que mais da metade dos brasileiros, principalmente os mais pobres e menos educados, “revelam simpatia por alguma bandeira conservadora”, sobretudo em matéria de costumes e moralidade.
Se o bolsonarismo de raiz com fortes conotações nazistas acabasse sendo visto como o espelho da direita simples ou dos conservadores, o perigo imediato seria sacralizar o extremismo.
Não é o mesmo confessar, como fez Bolsonaro , que antes de ter um filho gay preferiria que acabasse morto sob as rodas de um caminhão, que o identifica como bárbaro, do que simplesmente preferir, sem a necessidade de ser homofóbico , ter um filho.” normal”, outra palavra capaz de envenenar a linguagem.
Tenho amigos que aprecio por suas qualidades humanas, seu altruísmo, seu respeito pelas diferenças que são considerados conservadores ou liberais na política. E vice-versa, todos conhecemos pessoas que se gabam de ser de esquerda e acabam enredadas em redes de corrupção e tingidas de intransigência, incapazes de compreender a riqueza da diversidade.
Preso, quando jovem, nas redes do franquismo cruel e antidemocrático, e estando no exterior, demorei muitos anos para poder votar. E meus votos sempre foram de esquerda porque quando entrei na cabine de votação fui assombrado pelo fantasma do fascismo, do franquismo e do nazismo.
Minha bandeira não era a da esquerda ou da direita, mas a da liberdade de pensamento. E nessa liberdade também entrou meu apreço por certos valores conservadores e libertários ao mesmo tempo que recebi de meus pais. Ambos eram professores pobres de escolas rurais. Eram tempos em Espanha de uma sangrenta Guerra Civil e ideológica e os meus pais foram castigados durante vários meses sem vencimentos porque, aparentemente, os alunos que saíam das suas escolas, ao chegarem ao liceu “faziam demasiadas perguntas aos professores”. E, claro, na raiz do franquismo, perguntas e interrogações, dúvidas e novidades, eram sinônimos de degeneração.
Por isso, hoje com muitos anos e experiências atrás de mim, se me perguntarem se sou progressista ou conservador, responderei, como um andaluz que passou a infância na Galiza, “depende”. Tenho, porém, muito cuidado com o poder das palavras que, no fundo, nos desnudam e nos identificam.
Há algo que pode ter valor universal e que nos define hoje no meio do turbilhão que nos rodeia na mudança dos tempos onde nem os maiores gurus das novas línguas são capazes de nos dizer onde vamos aterrar.
E no meio de tudo isso, quando se trata de julgar alguém politicamente, fico com a velha linguagem dos meus ancestrais, aqueles que ainda cultivavam a terra, quando diziam de alguém “é uma boa pessoa”. Progressista ou conservador? “Pelos frutos os conhecereis”, disse o jovem e sábio judeu Jesus de Nazaré, que acabou revolucionando a história.
(Transcrito do El País)