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O Picareta (por Gustavo Krause)

É correto afirmar que “o Picareta”, figura singularíssima, é um genuíno brasileirismo

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1 de 1 signos mais falsos do zodíaco - Foto: Reprodução/João Bidu

O título é uma apropriação indébita do substantivo feminino “a picareta”, ferramenta útil para perfurar a dureza de pedras, rochas, hoje, ultrapassada por processos tecnológicos mais eficazes.

Já o substantivo sobrecomum (comum ao masculino e feminino) tem um significado de origem imprecisa. Alguns estudiosos do nosso idioma sugerem uma relação com “pícaro”, personagem dos romances/novelas picarescos com raízes na Espanha renascentista que assumia o papel de heróis malandros, marginais, cuja graça estava na capacidade de enganar fidalgos e burgueses emergentes.

Apesar de alguma semelhança, é correto afirmar que “o Picareta”, figura singularíssima, é um genuíno brasileirismo. De fato, passa longe da malandragem contraventora (inspiração poética que deu nome à composição de Cazuza no voz de Cassia Eller), assim como da esperteza “defensiva” das raposas políticas, uma das virtudes maquiavelianas, atribuída ao Príncipe.

Atualmente, o mundo passa por vertiginosas e profundas transformações. As mudanças afetam a sociedade, a economia, as instituições revolucionando costumes desde as famílias, passando por novos padrões de relacionamento e interações sociais, ao formato das organizações políticas e econômicas, submetidas ao stress da velocidade da comunicação e da insegurança patrimonial.

Mudam, também, os mecanismos de proteção institucional e, na mesma escala, os métodos da delinquência utilizados pelos bandidos de “colarinho branco” que resultam na apropriação bilionária de gestores, membros de associações criminosas. A fraude dos crimes praticados e de negócios suspeitos atingem cifras astronômicas, conforme atestam o resultados de investigações, expostos pela mídia nacional e estrangeira.

No Brasil, o picareta é um tipo de delinquente com especial sofisticação, a exemplo de Castelo personagem central do saboroso conto “O homem que sabia javanês” de autoria do escritor libertário, Lima Barreto (1881-1922), com atuação predominante no “Brasil imbecil e burocrático”.

Sem cair na armadilha de comparar épocas com o suspiro saudoso – Ah, no meu tempo…, o mencionado terreno do Brasil segue fértil e acolhedor, bem como os atributos e a trajetória comuns ao arquétipo do picareta.

Com algum esforço de observação, os protagonistas de recentes e chocantes e episódios revelam um conjunto de características do picareta em ação: mostra-se oportunista, versátil, certeiro e obedece a um roteiro estratégico bem elaborado e eficiente.

O primeiro momento de etapas interligadas é a entrada do picareta no mercado que não se confunde com o funcionamento de uma ordem espontânea entrelaçada a uma ordem institucional. Nada de competição, concorrência, como preconizara a visão fundadora, em 1776, do grande Adam Smith (1723-1790). O que atrai, o que seduz o picareta é o “capitalismo de laços”, cartorial, subsidiado, monopolista.

Na montagem da estratégia para o assalto ao bem público ou privado, o picareta se previne: busca se cercar de uma sólida arquitetura jurídica, a ser construída por advogados e “consultores” competentes e influentes de modo a proteger futuras responsabilidades cíveis, fiscais e criminais. Instala “lavanderias”, planta “laranjais” e busca paraísos fiscais, abrindo “caminhos seguros” para garantir o “crime perfeito”.

É preciso prestar a atenção à coreografia e aos movimentos do picareta. Simpático, elegante e convincente, ele se aproxima do poder de plantão e, no sentido mais amplo, de canais que sirvam ao objetivo de tirar o máximo proveito de vantagens.

O picareta se mostra atual e devidamente antenado. A camuflagem mimética, predadora ou defensiva, é o verniz da modernidade e um método de ação. No discurso, incorpora o modo “geopolítica global”; agrega preocupações com a questão da sustentabilidade (corporações/ESG); e se dispõe participar do esforço social para superar a pobreza e a emergência climática. Tudo isto sem abandonar o invólucro das métricas chiques: veste sob medida, o novel, refinado, o neo-enófilo gourmet, também, se diverte cafungando o pó.

No percurso, nem tudo são flores. Pode pintar escândalos em variadas escalas. Vem a calhar o jargão do mercado: a hipótese estava “precificada”. Entram em funcionamento os mecanismos protetivos previamente organizados.

O picareta é traído pela própria ganância, autossuficiência e sempre apostou na impunidade. Crime? Que crime? Afinal, ele se julga um patriota: produz, paga impostos, gera empregos, rendas, claro, mais que recompensadas pela contrapartida generosa do orçamento público.

Com enorme capacidade de adaptação, o picareta encara o mundo digital e as novas possibilidades, sempre, obediente ao caráter universal de princípios: aproximar-se e exercer influência sobre o poder político; culpar os governos por eventuais fracassos; acreditar firmemente no final feliz: rico e impune

Gustavo Krause foi ministro da Fazenda

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