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O jornalista e o bilionário (Por Armando Mendes)

“Isso é covardia, e a democracia será a vítima”

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Mario Tama/Getty Images
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1 de 1 Imagem colorida de americanos acompanhando debate - Foto: Mario Tama/Getty Images

Marty Baron, editor-executivo do Washington Post de 2013 a 2021, está “excepcionalmente desapomtado” com o dono do jornal, Jeff Bezos. Foi Bezos quem o levou para dirigir a redação ao comprar o jornal mais importante da capital americana (e um dos mais lidos do país), há onze anos.

Enquanto Baron comandou a redação do Post, tudo correu aparentemente bem entre o editor veterano e o bilionário da tecnologia digital transformado em empresário da imprensa tradicional (Bezos criou e continua a ser o dono da Amazon, a loja digital que começou como uma livraria e hoje é um supermercado global que vende de tudo e mais um pouco). Mas as coisas mudaram desde a semana passada.

Baron não se conforma com a decisão do jornal de não mais escolher um candidato a presidente dos Estados Unidos para endossar. A mudança vale já a partir da próxima eleição do dia 5 de novembro, disputada cabeça a cabeça pela democrata Kamala Harris e pelo republicano Donald Trump.

“Não fico mais chocado com facilidade estes dias (…), mas estou profundamente desapontado”, ele disse ao repórter Isaac Chotiner, da  revista New Yorker, em entrevista publicada na sua versão online. Além de desapontado, Baron está preocupado com o significado, para o país, do que ele considera uma demonstração de fraqueza do proprietário de um jornal como o Washington Post.

Embora a decisão tenha sido anunciada há uma semana pelo executivo-chefe da empresa dona do jornal, a responsabilidade pela subida no muro vem sendo atribuída por fontes diversas ao próprio Bezos.

A editoria de opinião do Post já tinha pronto um editorial comunicando o endosso a Kamala Harris, quando chegou a decisão de cima; o Post não publicaria o editorial de apoio a Harris e informaria aos leitores que o jornal não vai mais endossar candidatos à Presidência dos Estados Unidos — nesta eleição e nas eleições futuras.

“Isso é covardia, e a democracia será a vítima”, Baron fulminou pela rede social X (ex-Twitter). Para o antigo editor do jornal, Trump interpretará a decisão como uma abertura para tentar intimidar o Post no futuro. O episódio demonstraria falta de espinha dorsal por parte de uma instituição de imprensa que se tornou famosa por sua coragem.

Aqui é preciso algum contexto. O Washington Post, para quem não lembra (ou nem era nascida na época), ganhou fama internacional ao denunciar o escândalo Watergate nos anos 70 do século 20 — a espionagem clandestina do comitê de campanha da oposição Democrata por arapongas desastrados a serviço dos Republicanos, o partido do então presidente Richard Nixon.

Antes desse episódio, o jornal era uma gazeta provinciana e pouco reconhecida fora de Washington. Mas o Post não cedeu à pressão do governo; enfrentou Nixon e o establishment conservador na defesa de seu direito de expor as malfeitorias eleitorais dos Republicanos.

O trabalho investigativo dos repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein, com o respaldo do então editor-executivo Ben Bradlee e da publisher Katherine Graham, fez deles celebridades globais. As reportagens da dupla sobre o envolvimento de auxiliares próximos de Nixon com a espionagem ilegal resultaram numa investigação do Senado, na abertura de um processo de impeachment e, afinal, na renúncia de Nixon.

Meio século mais tarde, outro ex-editor do Post se diz à New Yorker “excepcionalmente desapontado” com as decisões do proprietário mais recente. Não é assim que se lida com o peso institucional de um grande jornal, e isso pode ter consequências negativas para a própria democracia americana.

“Qualquer pessoa que possua uma organização de mídia precisa estar disposto a resistir a pressões intensas”, Baron observa. “E Bezos já demonstrou que é capaz e disposto a fazer isso” (aqui, o ex-editor se refere a outros confrontos passados entre o Post e Donald Trump por causa de matérias publicadas que desagradaram ao ex-presidente; ele reconhece que, nesses casos mais pontuais, Bezos deu respaldo total à redação e não cedeu às pressões de Trump).

“Agora, o que me preocupa é que haja um sinal de fraqueza”, adverte Baron. E Trump, ele observa, ao perceber fraqueza, vai bater mais forte no futuro.

O lema do Washington Post de Jeff Bezos é Democracy Dies in Darkness — A Democracia Morre Na Escuridão, numa tradução livre. Está estampado na página online de cadastramento de novos leitores e  assinantes.

As palavras do lema foram lembradas, nos últimos dias, entre os jornalistas e o público leitor dos Estados Unidos, que reagiram com espanto e indignação à decisão do Post de não endossar um candidato à presidência do país — o que é uma tradição por lá. Mas a surpresa talvez possa ser vista como uma confirmação irônica do slogan.

Dezenas de milhares de leitores cortaram suas assinaturas do Washington Post nos últimos dias; editorialistas e membros do conselho editorial renunciaram a seus postos; e o próprio Marty Baron, em entrevistas, apontou para uma contradição significativa. A decisão de desistir do endosso a um candidato foi tomada pelo Post na hora errada, em cima de uma eleição presidencial crucial e disputadíssima, sem debate interno e sem tempo para discussão prévia.

Uma decisão tomada no escuro, portanto (esta conclusão é do escriba destas mal-traçadas, não de Baron). O próprio Bezos, entretanto, reconheceu esse erro de momento numa nota assinada que publicou no Post como explicação e apelo a que acreditemos em seus altos princípios. Se Trump afinal levar essa eleição, na lei ou no grito, e começar a pôr em prática as barbaridades políticas sugeridas na campanha, vai ser inevitável lembrar que, nas eleições dos Estados Unidos de 2024, a democracia começou a morrer quando o Washington Post apagou a luz.

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