O inconcebível indulto de Biden ao próprio filho (João Miguel Tavares)
Biden acaba de destruir o único verdadeiro capital político do Partido Democrata: estar moralmente acima do imoral Trump
atualizado
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Nos dicionários, “moralista” é um autor de obras de moral ou um defensor de certos preceitos morais. Infelizmente, os dicionários estão desatualizados. “Moralista” é hoje uma pessoa irritante que pretende impor aos outros as suas convicções. A palavra deslizou da virtude para o vício. Chamar “moralista” a alguém nunca é elogio. Todo o “moralista” está sempre “armado em moralista”. Todo o “moralista” é um “falso moralista”, que insiste que adotemos determinados comportamentos, perturbando o nosso irredutível direito a fazer o que bem entendermos.
A minha costela individualista aprecia esta forma de pensar – mete-te na tua vida e não chateies. Já a minha costela gregária sempre teve um fraquinho por moralistas – desde que se esforcem por viver de acordo com os bons princípios que apregoam. São estes moralistas que tomamos como inspiração, quando adquirem uma certa dimensão pública, e que podemos oferecer aos nossos olhos como exemplos de que sim, é possível (e desejável) circular pelo mundo de coluna direita e com alguma capacidade de sacrifício pelo bem comum. E, não, o cinismo não é o novo sinônimo da palavra “lucidez”. Não estamos condenados a ser ingênuos ou burros só por nos recusarmos a ver maquinações ou segundos e terceiros sentidos por detrás de tudo aquilo que acontece.
O bom moralista faz muita falta, e é por ele escassear após a falência das grandes narrativas que aqueles que reclamam para si o papel de referência moral de um país não podem fazer explodir a sua palavra e os seus princípios na cara de toda a gente, até nada mais sobrar se não aquele maldito cinismo, quando a última réstia de decência se eclipsou. Com o indulto que Joe Biden decidiu atribuir ao seu próprio filho na hora de sair da Casa Branca, rasgando a promessa de não intervenção no processo que zera antes das eleições, e impedindo Hunter Biden de ouvir a sentença marcada para o próximo dia 16 – provavelmente de prisão efetiva, após a condenação por posse ilegal de arma e fraude fiscal –, toda a ascendência moral que Joe Biden tinha sobre Donald Trump ruiu como um castelo de cartas. Este é um ato de tal forma vergonhoso que Biden acaba de destruir o único verdadeiro capital político do Partido Democrata: estar moralmente acima do imoral Trump. Quem indulta um filho condenado não está acima de nada; é um ato de absoluta corrupção institucional, mesmo não violando a lei americana.
Como se explica uma barbaridade destas? Há a parte do amor de um pai pelo filho problemático, tendo em conta a colecção de tragédias da família Biden – mas o Presidente dos Estados Unidos não pode pôr um filho à frente dos interesses da nação que jurou defender. E depois há a parte de uma vingança que se serve fria, e da forma mais brutal possível. É como se Joe Biden, num dos seus últimos gestos políticos, tivesse decidido que já chegava de sacrifícios pessoais em nome do partido e do país, e resolvido punir brutalmente o Partido Democrata pelo processo que conduziu ao seu afastamento da corrida à Casa Branca.
Os democratas vão demorar anos a recuperar desta decisão, que lhes vai ser esfregada na cara de cada vez que resolverem levantar o dedo para criticar a falta de princípios de Donald Trump – a começar pelo esperado perdão aos envolvidos no assalto ao Capitólio. Vamos passar a ouvir todos os dias: “Se Biden pode, porque não Trump?” Nada é mais corrosivo para uma sociedade do que a hipocrisia dos falsos moralistas.
(Transcrito do PÚBLICO)