O governo de saias (por Gustavo Krause)
O papel da mulher moderna é um crueldade: o homem soma resultados e finge que divide tarefas
atualizado
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O título original do artigo seria “Da escravidão ao Nobel de Economia”, em homenagem a norte-americana Claudia Goldin, a primeira mulher a ganhar a láurea isoladamente (Elinor Ostrom, norte-americana – 2009 e Esther Duflo – 2019 franco-estadunidens compartilharam o Prêmio).
Todavia, identifiquei artigo de minha autoria, publicado na Folha de São Paulo e no Jornal do Commércio/Pe (Edição de 08/06/93) sobre a questão de gênero com o título mencionado. Peço permissão ao leitor para reproduzi-lo, sem alteração, contando com a compreensão em relação às peculiaridades marcadas pela passagem de 33 anos.
“Vou repetir o que já disse em outras oportunidades: ao longo da história, o bicho-homem sacaneou o que pode com sua cara-metade. Sobre a mulher, exerceu a mais singular, a mais violenta e a mais institucionalizada de todas as opressões.
Trata-se de uma opressão em que o oprimido não pode destruir o opressor; é uma opressão consagrada pelos usos e costumes, e institucionalizada pelos códigos.
O mais curioso é que a opressão se assenta sobre quatro grandes mentiras.
A primeira é de ordem demográfica com desdobramento político: inventaram que a mulher faz parte das minorias oprimidas. Que é discriminada não há dúvida, como não há dúvida de que as mulheres constituem uma maioria aritmética e maioria eleitoral.
A segunda mentira foi a disseminação da falsa crença que mulher é sinônimo de “sexo frágil”. Ora, para quem tem uma expectativa de vida maior que a do homem; para quem enfrenta com heroica resistência às dores físicas e morais, fazendo inveja aos robustos marmanjos; para quem foi brindada por uma linda sexualidade que zomba do tempo, o sexo não é frágil, é fortíssimo.
Mas as mentiras não ficam por aí. Antes que a sociologia ou a economia dissertassem sobre as relações de poder na vida conjugal o que caberia na especialização do trabalho da economia doméstica, o homem, espertamente, sapecou uma coroa de espinhos na cabeça da “rainha do lar”.
E agora, dando a entender que Olympe de Gouges não morrera em vão com a cabeça separada do corpo, por obra da guilhotina, porque cometeu o pecado de proclamar a “Declaração Universal do Direito das Mulheres”, os homens reconhecem e proclamam a vitória da “revolução silenciosa feminista” que escreveu um comovente papel a ser desempenhado pela mulher moderna.
O papel da mulher moderna é uma crueldade. Significa a aritmética do diabo: o homem soma resultados e finge que divide tarefas. Aí a mulher se mata trabalhando. Executiva, jornalista, política, profissional liberal, operária. E ainda amamenta as crianças, toma lição dos meninos, não esquece os pendores de quituteira e, de noite a companheira e amante está um caco.
Em compensação, a maioria dos companheiros continuam fazendo bilu-bilu nos pimpolhos e as “filhas de Eva” começam a ver o enfarte desfiar fibra por fibra do miocárdio e a queda de cabelo atualizar as velhas perucas kanekalon. Se na classe média sobrevivente, faltarem os artefatos conhecidos como freezer e micro-ondas, está prejudicado o precário armistício celebrado pelos casais contemporâneos.
Apesar de tudo, as mulheres estão com a bola toda e tomam conta da cena brasileira. A crise brasileira, estou convencido é a crise da androcracia e a dominação masculina está sendo comida pelas beiradas.
Os âncoras que se cuidem! Lilian, Mônica, Marília e Leilane dão de goleada nos seus pares.
Daniela Mercury tomou conta o palco. E o que dizer do eterno “monstro sagrado” chamado Fernanda Montenegro.
O rebote é o mérito incontestável de Paula; a cesta, do talento extraordinário de Hortência.
E nas paradas literárias. Estão aí arrebentando: Raquel de Queiroz, Danuza Leão, Camile Paglia, Dora Kramer, Maria Mariana.
Por falar em parada, há uma que não é militar. É aquela em que o grito de ordem-unida é substituído pela palavra de ordem que é lutar pela melhoria do soldo dos maridos. Enquanto eles estão nos quarteis, elas fazem mobilização política. Ainda bem que a disciplina e a hierarquia castrense não preveem cadeia para a mulheres. Sem essa de jogar a nossas “Joanas D’Arc” nas fogueiras inquisitoriais.
O futuro da androcracia está complicado. Eu, por exemplo, sou vidrado por uma pequena notável chamada Luiza Erundina. Saiu lá dos cafundós, venceu todos os preconceitos e hoje é uma respeitável personagem da República.
Meu falecido pai confirmaria a procedente observação “Toda Marta é Rocha” pois a delegada é uma rocha de coragem quando enfrenta o banditismo dentro e fora da polícia carioca.
E que beleza de juíza Denise Frossard fazendo história no país da impunidade e reacendendo esperança nas instituições!
De quebra, tem a Denilma, rodando a alagoana.
Que tal um plebiscito: androcracia ou ginecocracia? Meu voto está decidido: é por um governo de saias. Parlamentarista”.
Gustavo Krause foi ministro da Fazenda