O futuro da democracia (por Gustavo Krause)
A democracia não goza no mundo de ótima saúde, como de resto jamais gozou no passado, mas não está à beira do túmulo”
atualizado
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Seria, no mínimo imprudente, refletir sobre a democracia, em qualquer dimensão temporal, sem considerar, como ponto de partida, a notável lucidez do pensador e jusfilósofo Norberto Bobbio na obra seminal “O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo”, publicada em 1986, pela editora Paz e Terra.
Entre as premissas, ele destaca o termo “transformação” dos regimes democráticos, presente nos textos que constituem o livro, e explica: “Prefiro falar em transformação, e não de crise, porque ‘crise’ nos faz pensar num colapso iminente. A democracia não goza no mundo de ótima saúde, como de resto jamais gozou no passado, mas não está à beira do túmulo”.
Na sequência, relata a resposta que deu a um estudante sobre se os Estados Unidos não deveriam ser considerados o como o país do futuro. Firme, mas sem perder a elegância, respondeu: “como país do futuro a América não me diz respeito. O filósofo não se afina com profecias […] A filosofia ocupa-se daquilo que é eternamente, ou melhor, da razão o com isto já temos muito o que fazer”, concluiu, recorrendo a Max Weber diante de semelhante indagação em relação a Alemanha: “A cátedra não existe nem para os demagogos nem para os profetas”.
Atualíssimas e pertinentes, as considerações do ilustre mestre italiano. Os regimes democráticos têm uma especial característica: extrai do que aparenta ser sua debilidade – o choque de ideias, as divergências do pluralismo, a competição pelo voto, o barulho que emana do funcionamento de pesos e contrapesos, tudo que, em certos momentos, transmite a sensação de instabilidade e fraqueza, é a força da natureza da democracia. Já o despotismo é estático, sempre igual a si mesmo, rígido não suporta pressão, não é capaz vergar: quebra a coesão social e produz vítimas.
Observam-se, ao longo do tempo, movimentos pendulares sob forma de ondas: ora, democráticas e ora, autoritárias o que aprofunda as pesquisas e os estudos da ciência política em relação à resistência da democracia diante dos riscos da aventura autoritária.
No livro Publicado em 1994 (A Terceira Onda: a democratização no final do século XX. Ed. Atica) Samuel Huntington identificou a partir de 1828 ondas de democratização, ondas reversas e a terceira onda a partir de 1974. Atualmente, o tema assume interesse especial seja pelo aumento do confronto de realidades antagônicas seja pela estratégia de corrosão das instituições que dão suporte à sociedade democrática.
Tomando-se período de 1990-2015, é possível constatar uma grande contradição: foi o quarto de século mais democrático da história mundial e o período em que ocorreu, em escala significativa, o enfraquecimento e a tomada do poder democrático, mediante a estratégia, sutil e insidiosa, de corroer por dentro as instituições que garantem a solidez da construção democrática.
Não à toa, o sociólogo e pesquisador do fenômeno contemporâneo do funcionamento das democracias, Larry Diamond (1951), denomina de “recessão democrática”, não a quantidade de autocracias implantadas, mas o processo predador de governança que legitima a farsa do discurso populista e a obra posterior de desmonte de “tudo que está aí”: um sistema corrupto e ineficiente. A rupturas institucionais dispensam o espetáculo das armas no espaço democrático das ruas.
Atualmente, vasta literatura tem se ocupado do fenômeno com forte dose advertência. Destaco o best-seller “Como as democracias morrem” (Jorge Zahar Editor Ltda. Rio de janeiro, 2018) que revela com profundidade a crise do sistema político norte-americano. Sobre o Brasil, alertaram, em debates e entrevistas, quanto aos efeitos do populismo bolsonarista. Por aqui, o oito de janeiro não vingou. Por lá, Trump está de volta, sedento de revanche e, curiosamente, com o peso da idade/experiência.
Por sua vez, o turbulento percurso da democracia brasileira de 2013 a 2023 mereceu consistente análise dos cientistas sociais, professores e colunistas políticos, Marcus André Melo e Carlos Pereira, no livro “Por que a democracia brasileira não morreu?” (Editora Schwarcz – São Paulo, 2024). Sem perder densidade acadêmica, o texto é acessível ao leitor que se interessa pela política como elemento essencial da educação cívica.
Os autores reconhecem a inexistência de um arranjo institucional que funcione de forma ideal. No caso brasileiro, explicitam as disfuncionalidades que afetam, inclusive, o nível de confiança das pessoas nas instituições (as distorções na relação entre o Poderes da República, a fragmentação partidária e o “custo da governabilidade” atrelados às raízes do clientelismo e do patrimonialismo, por sua vez, fortalecidos pela individualização da representação parlamentar).
No entanto, defendem o Presidencialismo Multipartidário como “uma coalizão de sobrevivência: não foi desenhado para gerar eficiência, mas para incluir, mesmo de forma dissipativa, os mais variados interesses sociais no jogo político”.
De outra parte, os autores dão ênfase à atuação de instituições contramajoritárias (Ministério Público, Instrumentos de controle e responsabilização dos atores políticos) e, de modo mais amplo, imprensa livre e sociedade ativa.
Assumem, portanto, o destemor de ir contra a corrente, ao atribuir a uma rede de organizações e um sistema de vetos aos excessos do poder, a proteção e o respeito à Constituição.
Voltando para concluir: e o futuro? Não custa agregar à sabedoria de Bobbio, a frase de Adam Przeworski “ama a incerteza e serás democrático”; a prescrição Jane Addams (Nobel da Paz, 1931): “a cura de todos os males da democracia é mais democracia”; o título que encerra o livro, “o paradoxo: a torcida pode vaiar, mas o jogo continua”.
Gustavo Krause foi ministro da Fazenda