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O fim do calvário de Julian Assange (por Carmo Afonso)

A justiça não pode ser uma vingançazinha por uma coisa que aconteceu lá atrás e que nos ficou atravessada

atualizado

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Imagem colorida de Julian Assange olhando por uma janela de avião - Metrópoles
1 de 1 Imagem colorida de Julian Assange olhando por uma janela de avião - Metrópoles - Foto: Reprodução/X

Julian Assange chegou a acordo com as autoridades norte-americanas. Vai declarar-se culpado, perante um tribunal dos Estados Unidos na ilha de Saipan, de um crime de conspiração para obter e divulgar documentos confidenciais de defesa nacional. Esta foi a parte final do preço a pagar pela liberdade. Tenham presente que Assange está detido desde dezembro de 2010 e que, desde então, viveu num absoluto calvário pessoal e judicial.

O tipo de crime de que estava acusado, e em relação ao qual se está a declarar culpado, foi criado para punir espiões na Primeira Guerra Mundial. Contudo, se atentarmos à sua descrição, constatamos que coincide em muito com aquilo que faz parte do trabalho do jornalismo de investigação: obter informação confidencial e divulgá-la publicamente.

Nunca saberemos como teria o tribunal julgado o caso de Julian Assange, concretamente se interpretaria o seu trabalho, que era também jornalístico, como tendo essa natureza ou se o condenaria como pretendido pelo Departamento de Justiça dos EUA. Mas temos boas razões para crer que as suas perspetivas não eram boas e que poderia ser condenado a uma pena até 175 anos de prisão, como já tinha sido previamente anunciado.

O acordo de Assange pode ter evitado uma sentença que marcaria uma ameaça à liberdade de todos os jornalistas. Falo de uma ameaça concreta: as decisões dos tribunais abrem precedentes e condicionam futuras decisões. Julian Assange salvou-se a si mesmo ao aceitar aquele acordo. Mas eventualmente fez muito mais do que isso.

A maior ou menor empatia que as pessoas sentem pela situação de Julian Assange tem sobretudo a ver com convicções políticas e muito pouco com a avaliação do seu caso, questões de justiça ou questões humanitárias. É um facto que parte do centro-esquerda e dos liberais nunca perdoará Julian Assange por ter divulgado emails de Hillary Clinton, que revelavam que instigou a guerra da Líbia, em 2011, enquanto se afirmava defensora da paz. São pessoas que nunca engrossaram as fileiras dos que exigiram a sua libertação. Essa divulgação de emails teve lugar durante a campanha para as presidenciais norteamericanas em 2016 e faz sentido que tenha contribuído para a derrota de Hillary Clinton nessas eleições.

A questão que se coloca é: há alguma coisa para perdoar?

Faço parte do grupo, à esquerda, que teria preferido que Hillary Clinton tivesse ganhado as eleições em 2016, da mesma maneira que agora desejo que seja Biden a ganhar as próximas. Nesse sentido, não agradeço a Assange a divulgação dos emails durante a campanha. E acredito que escolheu aquele momento consciente das consequências.

Parte da esquerda mais à esquerda tem tendência para desconsiderar a gravidade da divulgação daqueles emails durante a campanha. Essa posição prende-se sobretudo com o facto de considerarem Hillary Clinton e Trump “igualmente maus”. Reparem que não estamos a falar de uma avaliação ética ou jurídica da divulgação dos emails, mas, sim, de puro desprendimento em relação ao resultado das eleições. É verdade que Hillary Clinton e Trump eram maus, mas não é verdade que fossem igualmente maus. Não se pode cair neste erro. Desculpar Assange em função de um erro não pode ser uma coisa acertada.

Porque deveremos então desculpar Assange e celebrar a sua libertação?

Antes de mais, porque não foi ele que verdadeiramente tramou Hillary Clinton. O que tramou Hillary Clinton foi a verdade sobre Hillary Clinton; foram os emails que a própria escreveu. Não é justo que se culpe quem os divulgou e que se desculpe quem os escreveu.

Acima de tudo, porque a divulgação dos emails de Hillary Clinton não integra as acusações que recaíram sobre Assange. Nada disso está em causa no seu enredo judicial. É fundamental separar as águas. É isso que seria pedido, exigido até, ao tribunal que viesse a julgar Julian Assange e ninguém se deve autodispensar do mesmo exercício. A justiça não pode ser uma vingançazinha por uma coisa que aconteceu lá atrás e que nos ficou atravessada.

Julian Assange trouxe para o domínio público informações gravíssimas, das quais nunca teríamos conhecimento e que nos dizem respeito. Devemos-lhe isso. E devemos-lhe também ter posto a nu que as sociedades democráticas em que vivemos não são santuários da liberdade e dos direitos humanos. O dia da sua libertação tem de ser um dia de alívio.

(Transcrito do PÚBLICO)

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