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O fascinante mundo dos obituários ignorados (Por Bárbara Reis)

Homens e mulheres negras, emigrantes e pessoas com deficiência

atualizado

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Lápide, cemitério
1 de 1 Lápide, cemitério - Foto: Reprodução/ Pexels

É um exercício de autocrítica tão belo que comove. Há seis anos que o New York Times pesquisa, escreve e publica obituários de pessoas que, quando morreram, teriam merecido um obituário, mas que, por mil razões – todas óbvias – o jornal ignorou.

São os obituários ignorados. A série chama-se Overlooked, o subtítulo é Overlooked No More e a entrada dos textos diz ao que vem: “Este artigo faz parte de Overlooked, uma série de obituários sobre pessoas notáveis cujas mortes, a partir de 1851, não foram noticiadas no The Times.” No início, em 2018, o jornal dizia que “desde 1851 que os obituários do New York Times têm sido dominados por homens brancos”, mas a frase caiu.

Ler esta página no site do Times – já publicaram mais de 200 obituários – é tempo bem passado. E é bom jornalismo.

Quando a abri, sabia que ia encontrar obituários de mulheres e de negros. Mas Overlooked é muito mais do que isso e é muito pior do que imaginei — apetece-me pôr um ponto de exclamação, mas vou conter-me.

Pior porque, quando o Times diz “notáveis”, não está a exagerar. Os obituários ignorados e agora escritos fora de tempo – mas ainda a tempo – são de pessoas que foram pioneiras, inventaram coisas, foram líderes, tinham legiões de fãs, eram famosos, abriram portas, fizeram escola, mudaram o mundo.

Não era a mulher brilhante que, por ser mulher, ficou nos bastidores; era a mulher brilhante, que foi reconhecida como tal em vida e que, ainda assim, foi ignorada pelo Times quando morreu. Algumas mortes terão sido notícia, mas não merecedoras desse Olimpo particular que é ser protagonista de um obituário num jornal de referência.

Talvez o mais impressionante seja a escritora Charlotte Brontë, que nasceu em 1816 e morreu em 1855, grávida. Ah, mas Jane Eyre foi publicado sob pseudónimo, isso explica a omissão. Nem por isso. O romance foi de tal forma discutido em público que, em 1848, um ano após a publicação, Brontë revelou ser a autora.

Ainda não está impressionado? O obituário acaba assim: “Apesar de Brontë não ter tido um obituário no New York Times, o seu marido, que morreu 51 anos depois, teve. O artigo tinha apenas cinco linhas e o título dizia tudo: Morreu o marido de Charlotte Brontë.” Não havia nada para dizer sobre ele. Fui ver o que fizera o Sr. Brontë para justificar um obituário, mesmo que minúsculo: era um reverendo, nada mais.

As histórias são notáveis hoje e eram notáveis quando estas pessoas morreram.

Como Mary Eliza Mahoney, a primeira enfermeira negra formada nos EUA, que “dedicou a vida a criar oportunidades na profissão para pessoas de todas as raças”. Podemos dizer: não foi notada, o Times não sabia da existência de Mahoney. Mas, em 1908, ela ajudou a fundar a National Association for Colored Graduate Nurses, que foi criada em resposta à exclusão de enfermeiras negras de outras organizações nacionais – foi um tema polémico e discutido. E, em 1920, aos 76 anos, Mahoney foi uma das primeiras mulheres americanas a registarem-se para votar, depois de ter feito campanha pelo direito de as mulheres votarem. Morreu em 1926, aos 80 anos.

É muito nicho, só se sabia disto em Boston, por isso o “esquecimento” do Times não surpreende?

Nesse caso, o que dizer de Rebecca Lee Crumpler (1831-1895), a primeira mulher negra a obter um diploma de Medicina nos EUA, que “lutou para tornar os cuidados de saúde acessíveis às mulheres e às comunidades negras, independentemente da sua capacidade de pagamento”?

Ou de Charlotta Bass, a primeira mulher negra a candidatar-se à vice-presidência dos EUA, em 1952, e que também foi uma jornalista pioneira? O título do obituário é Antes de Kamala Harris, havia Charlotta Bass.

Quando morreram, o Times não fez o seu obituário.

O mesmo para Ora Washington, “dominante” em basquetebol e ténis ao longo de 20 anos e que foi, muito provavelmente, a primeira estrela negra do desporto feminino nos EUA. A partir de 1929, conta o Times, Washington “ganhou sete campeonatos nacionais de singulares consecutivos – e oito no total – como membro da Associação Americana de Ténis, uma liga que acolhia todos os participantes, numa altura em que a principal liga do mundo, a Associação de Ténis de Relva dos Estados Unidos, só permitia a participação de jogadores brancos. Washington também ganhou 12 títulos consecutivos de pares da ATA de 1925 a 1936, incluindo nove com a sua parceira Lulu Ballard, e três títulos de pares mistos.” Não se pode dizer que fosse desconhecida.

Ah, mas isso era dantes, há 100 anos, agora já não acontece. Nesse caso, o que dizer de Kim Hak-soon, que quebrou o silêncio das “mulheres de conforto”, as raparigas forçadas a serem escravas sexuais dos soldados japoneses na II Guerra Mundial, cujo testemunho público, em 1991, encorajou outras sobreviventes a falar e forçou o Japão a admitir e a pedir desculpa? Diz o Times que Kim morreu aos 73 anos, em 1997, e “deixou um legado duradouro e inspirou outras ex-escravas sexuais a darem a cara no Japão, Filipinas, Indonésia, Malásia, China, Austrália e Países Baixos”. Em 1991, conta o Times, Kim “ouviu notícias de que o governo japonês negava ter recrutado ‘mulheres de conforto’ e contactou um grupo de defesa dos direitos das mulheres”.

Esta é uma história que não acaba. O Times também não fez um obituário de Clarice Lispector. Ninguém conhecia a escritora brasileira, porque escrevia em português? Mas a sua colectânea de contos Laços de Família, publicada em 1960, foi um best-seller no Brasil e o romance A Maçã No Escuro, de 1961, contado do ponto de vista de um homem que acabara de matar a mulher, foi traduzido para inglês por Gregory Rabassa e publicado pela Alfred A. Knopf em 1967. Quando morreu, dez anos depois, Lispecter era conhecida no meio literário internacional.

Os novos obituários incluem Julia Morgan, arquitecta pioneira, a primeira mulher a obter uma licença profissional na Califórnia. O Times descreve-a como “prolífica criadora de centenas de edifícios”, como o Hearst Castle, o “castelo” do magnata dos jornais William Randolph Hearst, em San Simeon, hoje um museu. Em 1898, aos 26 anos, Morgan tornou-se a primeira mulher a passar nos exames de admissão da escola de arquitectura da Califórnia e foi notícia por isso: “O San Francisco Examiner saudou o feito com o título: Rapariga da Califórnia ganha grande honra.” Morreu em 1957, aos 85 anos.

Também inclui June Almeida, a cientista que identificou o primeiro coronavírus. Em 1966, Almeida “usou um potente microscópio electrónico para captar uma imagem de um misterioso agente patogénico, o primeiro coronavírus conhecido como causador de doenças humanas”.

Etc.

A lista dos esquecidos que estão a ser “obituarizados” inclui homens negros, emigrantes e pessoas com deficiência.

 

(Transcrito do PÚBLICO)

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