O espírito do tempo (por Marcos Magalhães)
Agora é a vez de Lula testar suas habilidades
atualizado
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Os grandes líderes frequentemente aprendem a ler as entrelinhas do tempo. O presidente Joe Biden soube ler no cenário político o momento de desistir da reeleição. Emmanuel Macron recebeu dos Jogos Olímpicos a oportunidade de reduzir a temperatura política do verão francês. Agora é a vez de Lula testar suas habilidades.
Assim que Biden abriu mão de seu projeto de permanecer por mais quatro anos na Casa Branca, a quase certeza do ex-presidente Donald Trump de retornar à antiga residência começou a perder o brilho.
Quem passou a iluminar o cenário político dos Estados Unidos foi a vice-presidente Kamala Harris, até então criticada por sua opaca atuação em Washington. Ela soube receber a tocha de Biden e logo passou a ensaiar o protagonismo que incendiou a militância democrata.
Ainda é cedo para dizer se ela será ou não capaz de superar o até então favoritismo de Trump, especialmente depois da bala que perfurou a orelha do republicano em um comício. Mas já é possível perceber que os ventos sopram em novas direções.
Se Biden foi capaz de identificar a hora certa, sua vice-presidente também soube aproveitar o momento para mudar o tom da campanha. Em ambiente marcado pela sisudez de Trump, Kamala passou a oferecer sorrisos e otimismo. Até os mais jovens voltaram a se interessar pelas eleições.
Ela hoje tem mais chances de chegar à Casa Branca do que Joe Biden tinha, até há poucas semanas, de permanecer onde está.
O presidente francês não precisa se preocupar em deixar o Palácio do Eliseu tão cedo. Seu mandato vai até 2027. Mas ele andava acuado pelas pressões da extrema direita, que havia obtido grande vitória nas eleições para o Parlamento Europeu.
Decidiu então convocar eleições antecipadas para a Assembleia Nacional. Pois o gesto resultou em uma surpresa: os eleitores deram maioria relativa aos partidos de esquerda, quando confrontados ao risco de serem governados por uma direita radical.
A pressão mudou de lado. A esquerda passou a cobrar do presidente a imediata nomeação de uma nova pessoa para ocupar o cargo de primeiro-ministro, cuja atuação na vida pública fosse coerente com as urnas.
Se o presidente foi ousado ao convocar eleições antecipadas, no novo momento político ele adotou a cautela. Esperou a conclusão dos Jogos Olímpicos de Paris para indicar a pessoa que compartilhará com ele a responsabilidade de governar a França.
Deu sorte. Se o país estava dividido, pessimista e cético antes da abertura dos Jogos, o sucesso da organização abriu caminho para um ambiente mais leve. A presença de atletas e turistas de todo o mundo até levou alguns parisienses a esboçarem sorrisos.
A indicação do novo primeiro-ministro, ou da nova primeira-ministra, não vai satisfazer a todo o mundo. Assim como as águas do rio Sena, porém, o ambiente político estará menos tóxico – embora não imune às mais resistentes bactérias.
E o Brasil nessa história? O sucesso relativo da delegação nacional às Olimpíadas – especialmente por parte de mulheres como Rebeca Andrade – ajudou a moderar o humor dos neandertais que habitam as redes sociais.
Houve até quem sugerisse que a cerimônia de encerramento dos Jogos do Rio de Janeiro – cidade ainda em busca de trazer à vida real as promessas de legado olímpico – teria sido mais divertida que a de Paris.
Agora, enquanto atletas retornam a seus países, deputados e senadores brasileiros começam timidamente a marcar seus voos para a capital federal, para retomar uma pauta legislativa cheia de obstáculos.
As atenções dos parlamentares, na verdade, já estão capturadas pelas aventuras das eleições municipais, dentro de dois meses. Afinal, estarão em jogo milhares de cargos de vereadores e de prefeitos, que terão papéis importantes nas eleições gerais de 2026.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva também está de olho nas eleições, para garantir alguns aliados no comando de cidades importantes do país. Até o fim de outubro, seu radar político estará dividido entre o cotidiano administrativo e os desafios das urnas.
E aqui entra a questão do tempo. Ou do timing político. Se Joe Biden conseguiu mudar o clima das eleições americanas e se Emmanuel Macron usou o momento na tentativa de serenar o país, o presidente brasileiro também precisa estar atento a seu relógio.
Ao fim das eleições municipais, ele já terá concluído quase a metade de seu terceiro mandato. E estará também às vésperas de receber líderes das maiores economias do mundo para uma reunião de cúpula em novembro, no Rio de Janeiro.
O que terá o presidente a mostrar a seus colegas do mundo inteiro? E o que terá a propor de novo à sociedade brasileira para justificar sua candidatura à reeleição em 2026?
Como sede do G-20, o Brasil será examinado com lupa por delegações e jornalistas internacionais. Antes mesmo de abertos os trabalhos da cúpula, uma avaliação do novo mandato de Lula será tema de relatórios e reportagens por todo o planeta.
Também estarão no foco das atenções os planos do governo para o futuro próximo e distante. As prioridades da presidência brasileira do G-20, como o desenvolvimento sustentável e o combate à pobreza, têm sido vistas com simpatia.
É preciso analisar com atenção como esses temas estarão na declaração final do grupo. Assim como o a capacidade do país de trazer essas propostas à vida real dos brasileiros.
A terceira presidência de Lula ainda precisa mostrar a sua cara. Ele chegou mais uma vez ao Palácio do Planalto com apoio de muita gente disposta a interromper a escalada da extrema direita. Muitos dos novos eleitores ainda aguardam propostas novas e claras.
Há uma janela de oportunidade aberta até o final de 2024. Cabe a Lula mostrar que ainda sabe captar o Zeitgeist, o espírito do tempo.
Marcos Magalhães. Jornalista especializado em temas globais, com mestrado em Relações Internacionais pela Universidade de Southampton (Inglaterra), apresentou na TV Senado o programa Cidadania Mundo. Iniciou a carreira em 1982, como repórter da revista Veja para a região amazônica. Em Brasília, a partir de 1985, trabalhou nas sucursais de Jornal do Brasil, IstoÉ, Gazeta Mercantil, Manchete e Estado de S. Paulo, antes de ingressar na Comunicação Social do Senado, onde permaneceu até o fim de 2018.