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O espírito do nosso tempo (por Gaudêncio Torquato)

O mundo está mais triste. A felicidade se esvai na poeira da história. A convivialidade entre pessoas cede lugar à arena das rinhas

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Mulher senta no chão com as pernas encolhidas. Ela está perto de uma porta e olha para o teto-Metrópoles
1 de 1 Mulher senta no chão com as pernas encolhidas. Ela está perto de uma porta e olha para o teto-Metrópoles - Foto: Getty Images

Interpretar o espírito do tempo é tarefa complexa para quem se aventura nesse campo. Periodicamente, este escriba tenta percorrer essa trilha, mesmo conhecendo as dificuldades que se apresentam. Discorrer sobre o espírito do nosso tempo é um exercício que abriga camadas de abstração, bagagem educacional, circunstâncias que cercam o analista e a intrincada floresta da política, da economia e dos costumes. Afinal, trata-se de construir uma passagem entre o ontem e o hoje, e procurar enxergar além dos horizontes. Haja risco.

Começo com a hipótese de que vivemos um tempo de angústia acumulada. O labor do cotidiano carrega a pressa, sob o peso de encurtamento de tarefas, cargas amontoadas de informação despejadas sobre nosso aparelho cognitivo, embate surdo com o ponteiro do relógio, que corre sem a percepção de nossos sentidos. O ontem era mais largo e demorado. O tempo parecia esticar sua duração, maximizando o usufruto. A palavra, expressa pela voz, tinha força. Embutia compromisso, firmeza, seriedade. Contratos de palavra entre duas pessoas não exigiam carimbo de cartório.

A ciência chega mais perto dos cidadãos, criando remédios para as dores e o sofrimento mental. Até o famigerado câncer, em algumas áreas, passou a ter cura. Mas uma enxurrada de novas endemias e pandemias abate a Humanidade, a par de conflitos e mortes em combates e por fome em cantões da África e isoladas regiões do planeta. O medo e mesmo o terror brandem o facão fundamentalista que assombra milhões de seres em lugares tomados pela barbárie.

A desigualdade entre pobres e ricos, afortunados e miseráveis, continua a exibir sua feição de injustiça. Os desiguais ampliam o volume de sua locução, principalmente grupos e núcleos organizados, que enfrentam com vigor a misoginia, a discriminação contra mulheres, negros e comunidades LGBT+. O ódio, as perseguições contra uns e outros, a violência que toma assento nos bancos escolares, matando crianças e adolescentes, descortina ondas de terror que sustam o processo civilizatório. A barbárie nos conduz ao passado.

A política deixa de ser missão a que um conjunto de cidadãos deve se comprometer a exercer pelo bem da polis e se transforma em profissão lucrativa. Locupletada de oportunistas, indicados por beneficiários do poder, apaniguados com moral enfiada no buraco. Os meios da política – os parlamentos, as campanhas eleitorais, a elaboração das leis e projetos – são embalados pelo celofane do utilitarismo das vantagens e benesses. A ágora, a praça da Antiguidade de Atenas, onde os construtores da democracia exerciam a cidadania e expressavam as demandas de sua representação, se transformam em praça de negócios. Tempos de política como comércio de barganhas.

O relógio corre, abrindo imensidões nos espaços da educação, com defasagens no processo de elevação do conhecimento para milhões de crianças que se veem privadas da escola presencial por causa da pandemia maior do século XXI. Atraso civilizacional. Enquanto isso, os laboratórios das ciências biológicas produzem substâncias quase milagrosas para evitar a mortandade que assola o planeta, sob volumes sonantes que enchem os cofres das companhias farmacêuticas. Tempos de alívio, padecimento e riqueza.

Se os direitos humanos ganham aplausos, com o adensamento de meios de prevenção e defesa, são, por outro lado, desprezados por grupos que adotam métodos ancestrais na realização de suas atividades, como temos visto nos flagrantes de trabalhadores obrigados a trabalhar sob o ferrão da escravidão. Tempos de opressão e massacre.

O mundo está mais triste. A felicidade de tempos bucólicos se esvai na poeira da história. A convivialidade entre pessoas cede lugar à arena das rinhas. O estresse ganha um marco na galeria das doenças da modernidade. Já não se dorme com tranquilidade. Os ansiolíticos enchem criados-mudos. A depressão se instala forte em nossa mente, sufocando os nossos neurônios.

O espírito do nosso tempo passa ao largo. Quase imperceptível.

Sêneca, o filósofo que nasceu em Córdova, na Espanha, no ano I, A.C, alertava: “não é curto o tempo que temos, mas dele muito perdemos. A vida é suficientemente longa e com generosidade nos foi dada, para a realização das maiores coisas, se a empregamos bem. Mas, quando ela se esvai no luxo e na indiferença, quando não a empregamos em nada de bom, então, finalmente constrangidos pela fatalidade, sentimos que já passou por nós sem que tivéssemos percebido”.

-Olhe a régua, olhe a régua”, alertava Vanderlei, neurocirurgião amigo, paraibano e habitante da metrópole paulistana. Abria as palmas das mãos no tamanho de uma régua imaginária de 100 centímetros para arrematar: “até aqui, a régua marca 50”; apontava para o meio. “Quando passa desse ponto, a régua costuma apressar o tempo”.

A sensação é a de um vácuo em nossas vidas. Não vimos o tempo passar. Elos perdidos na teia do cotidiano.

 

Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político

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