O dilúvio das chamas (por Gustavo Krause)
O Brasil tem assistido e vivido catástrofes reais na repetição de inundações e incêndios
atualizado
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O título é um paradoxo. Figura de linguagem que associa ideias opostas: de um lado, a água; do outro o fogo. Não se fundem, mas separadamente reforçam a imagem escatológica que antecipa o final dos tempos. Têm guarida na mitologia de variadas culturas e, constitui parte da teologia de muitas religiões que trata dos eventos do fim do mundo.
Produto de crenças ou anúncios proféticos que afetam a imaginação humana, o fato é que o Brasil tem assistido e vivido catástrofes reais na repetição de inundações e incêndios de proporções devastadoras em que a sensação de horror gera o medo generalizado de que esta associação inacreditável – o fogo e a água – prenuncie o cenário do apocalipse.
Um enorme pedaço do Brasil está pegando fogo; outro, morrendo afogado. É o que revelam as gigantescas labaredas associadas ao imenso volume de inundações que destroem mais a bela, diversificada e generosa natureza do planeta: a natureza brasileira. Por consequência, ameaçam seriamente a vida na sua totalidade.
O choque da paisagem que dissemina a destruição e o medo das pessoas é revoltante porque a obra não decorre dos desastres naturais ou acidentes pontuais: é o resultado da ação enfurecida da cobiça humana.
O que mais fere o cidadão brasileiro é a dimensão perversa do crime porque atinge mortalmente o mais precioso patrimônio da nação brasileira: a natureza que lhe deu o nome de batismo e abriu as portas do futuro. O singularíssimo patrimônio, além do valor concreto, econômico, estratégico, sempre foi uma fonte de inspiração para os espíritos sensíveis à ética da vida e à estética da criação artística.
O anúncio do colonizador, em 1500, “terra à vista”, foi um o grito premonitório, pois, segundo, Caminha, “a terra em si é de muito bons ares, frescos e temperados […] Águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo por causa das águas que tem!”
O deslumbramento com o “novo mundo” era o ponto convergência dos dois olhares conflitantes do ato fundador do Brasil: uma visão edênica cheia de arrebatamento romântico proclamando o mito do paraíso perdido; o olhar cúpido da exploração colonialista.
O “espírito do tempo” acolhia com benevolência e, até mesmo com entusiasmo, a ambição econômica, para além dos metais e pedras preciosas, a despeito de vozes que, em reflexões antecipatórias atribuíam valoração concreta e afetiva ao patrimônio natural.
É o que certificam as ideias de José Bonifácio de Andrada e Silva, o Patriarca da independência, personagem de sólida e eclética formação intelectual (Direito, Filosofia Natural, Matemática, pesquisador naturalista e mineralogista). Há dois séculos, escreveu: “Destruir matas virgens, como até agora tem sido praticado no Brasil, é crime horrendo e grande insulto feito à mesma natureza. Que defesa produziremos no tribunal da Razão, quando nossos netos nos acusarem de fatos tão culposos”. Uma referência que dá a dimensão Bonifácio: em 1790 publicou seu primeiro trabalho científico na defesa da preservação das baleias.
No Início do século XX, Euclides da Cunha descreveu a dinâmica da economia nacional: “Temos sido um agente geológico nefasto, e um elemento de antagonismo terrivelmente bárbaro da própria natureza que nos rodeia […] não há exemplo mais típico de um progresso às recuadas. Vamos para o futuro sacrificando o futuro como se andássemos nas vésperas do dilúvio” (Obra Completa, Rio, Ed. José Aguilar, 1966, Vol. I, p. 181).
Ainda no século XIX, a luminosidade das mentes abolicionistas, a exemplo de Rebouças e Nabuco, revelava um diagnóstico ambiental desalentador causado pelo vetor da destruição, a escravidão, que ao queimar florestas, esgotar o solo, produzia uma população miserável de proprietários nômades.
Não faltaram, mundo afora ideias, que semearam uma nova consciência ambiental, a princípio, ignoradas e, até certo ponto, consideradas ingênuas ou subversivas, frente a uma noção linear progresso assentada em dois pilares falaciosos: o crescimento econômico, qualquer custo, é um bem; os recursos naturais são inesgotáveis.
Bastaram dois séculos para demonstrar que as sucessivas revoluções industriais comprometeriam gravemente os limites biofísicos da natureza e, sequer, distribuíram equitativamente a afluência nunca vista na história. É o ponto dramático a que chegamos: natureza escassa e desigualdade social extrema.
O risco é real e a ameaça de uma catástrofe planetária tem data marcada para acontecer. O estimado leitor, então, poderia indagar: se era para enfatizar os eventos catastróficos por que não começou o artigo pelas causas, agora, resumidamente, mencionadas?
Por uma simples razão, a raiz mais profunda da crise ambiental está fincada na relação entre o Humano e a Natureza, o Dominante e a Dominada como se fossem realidades separadas ou entidades antagônicas. Ou seja, o rumo do dualismo antropocêntrico entrou em rota de colisão com os limites planetários. Generosa, a natureza, afirmam alguns pensadores, não se vinga, mas reage. A semântica não altera a tragédia anunciada. Somos a Unidade ou nada seremos.
É fundamental compreender que a natureza tem um valor intrínseco. Respira, expira, transpira, acolhe, expulsa, afaga, castiga e nesta variedade de sentimentos, emoções, ela se integra na comunhão dos cuidados.
A partir desta mudança, que venha de dentro para fora, o futuro é possível. No Brasil, natureza escolheu o domicílio para todos os biomas. O singularíssimo pampa; a heroica caatinga; a colorida mata atlântica; o generoso cerrado; o acolhedor pantanal; a monumental Amazônia, um bem da vida, como dizia o poeta Thiago de Melo.
Não por outra razão, a natureza é fonte de inspiração e afeto dos poetas, romancista, cancioneiros: Gonçalves Dias (Canção do Exílio); Guimarães Rosas (Grande Sertão: Veredas); Luiz Gonzaga (Asa Branca); Cecília Meireles (Mar Absoluto); Érico Veríssimo (O Tempo e o Vento) e por aí vai.
Somente o poder do amor e a força da arte são capazes de colocar o fogo e a água nos seus devidos lugares para não se consumar a sabedoria indígena: “só quando a última árvore for derrubada, o último peixe for morto e o último rio for poluído é que o homem perceberá que não pode comer dinheiro”.
Gustavo Krause foi ministro da Fazenda