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O dia em que prendemos o Ustra (por Moacyr Oliveira Filho)

Por conta da matéria, Ustra cumpriu uns dias de cadeia, por transgressão

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Arquivo/Estadão Conteúdo
Carlos Alberto Brilhante Ustra
1 de 1 Carlos Alberto Brilhante Ustra - Foto: Arquivo/Estadão Conteúdo

O coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, já falecido, comandou o DOI-CODI do II Exército, a temida OBAN, entre as ruas Tutóia e Tomas Carvalhal, no bairro do Paraíso, em São Paulo, de 29 de setembro de 1970 a janeiro de 1974. Nesse período, 47 presos políticos foram mortos ali, sob tortura, ou por ação direta dos seus agentes. Ustra, que usava no DOI-CODI o codinome de Doutor Tibiriçá, foi o primeiro agente público condenado, em 2008, em ação declaratória por sequestro e tortura, mais de trinta anos depois de fatos ocorridos durante a ditadura militar (1964-1985).

Eu fui preso e torturado ali, em maio de 1972. Nas semanas em que estive preso tive pouco contato com Ustra. Afinal, eu era um peixe pequeno, um mero militante estudantil de base, e ele dava preferência aos peixes graúdos, especialmente aos militantes das organizações da luta armada, aos dirigentes, e aos que haviam passado por treinamento em Cuba.

Minha mãe acabou tendo mais contato com ele do que eu. E tinha verdadeiro horror do Doutor Tibiriçá. Ela foi recebida por ele nos primeiros dias de minha prisão, quando ouviu que eu não estava preso ali. Só no quinto dia é que ele admitiu que eu estava lá e autorizou que minha mãe levasse roupas limpas pra mim. O que deixou a Dona Marília furiosa.

Por ironia do destino, nossos caminhos se cruzaram várias vezes, anos depois, quando eu já era jornalista profissional e morava em Brasília.

A primeira delas foi em 1981, quando fui cobrir uma solenidade de troca de comando no QG do Exército, em Brasília, conhecido como Forte Apache. Sai da redação da Veja com a sensação de que aquela solenidade iria render alguma coisa, além da mera formalidade. E foi dito e feito.

Quando a solenidade terminou e a imprensa foi liberada do seu cercadinho e pode circular pelo salão, onde era servido um coquetel, lá pelas tantas, dei de cara com o coronel Ustra, que servia no Estado Maior do Exército.

Com as pernas tremendo, sai atrás do fotógrafo que me acompanhava, Salomon Cytrynowicz, o Samuca, e apontei o Ustra para que fosse fotografado. Foram apenas dois ou três cliques rápidos. Suficientes para Ustra, que nunca gostou de ser fotografado, perceber que tinha sido flagrado, e sumir de cena. Minutos depois, um militar ainda tentou impedir o registro, mas conseguimos escapar com o filme intacto.

Semanas depois, a foto do Ustra foi publicada num box, na página 27 da edição nº 665, da Veja, de 3 de junho de 1981, numa matéria sobre a comunidade de informações. Essa foi a primeira foto do famoso torturador publicada na imprensa brasileira.

Em agosto de 1985, a então deputada Beth Mendes, numa viagem oficial ao Uruguai, reconheceu Ustra, ocupando a função de Adido Militar na Embaixada do Brasil em Montevidéu, em pleno governo Sarney, na chamada Nova República. Beth Mendes, que havia sido presa e torturada por Ustra, escreveu uma carta a Sarney, denunciando a presença do notório torturador naquele posto diplomático, e Ustra acabou sendo demitido.

Na época, eu era editor de política da Última Hora de Brasília, e aproveitei o episódio para escrever um artigo, que foi publicado na página 3 da edição do dia 17 de agosto de 1985, contando uma cena que me impressionou muito, durante a minha passagem pelo DOI-CODI.

Intitulado Brinquedo Macabro, o artigo contava que Ustra levava a sua filha Patrícia, então com apenas 3 anos de idade, para passar algumas tardes no DOI-CODI, brincando com as presas, às vezes no pátio, às vezes na própria cela feminina, o X-6, e concluía dizendo: “Uma pessoa que levava a própria filha para um centro de torturas, não pode alegar que não sabia o que estava fazendo”.

Ustra não só não desmentiu o artigo, como o transcreveu num capítulo do seu primeiro livro – Rompendo o Silêncio. Intitulado Um Brinquedo Macabro? (páginas 239 a 248), o texto diz que a presença da filha entre as presas era uma demonstração do “carinho” que ele e sua esposa, Maria Joseíta, tinham com elas.

Mais do que isso, o livro traz, num dos primeiros capítulos, a transcrição de uma carta de Joseíta às filhas Patrícia e Renata. Intitulada A revolta de uma mulher (páginas 16 a 18), na carta ela também cita o artigo e diz que a presença dela e da filha Patrícia no DOI-CODI era uma “pequena obra assistencial”.

O último episódio com certeza foi o mais gratificante.

Eu era assessor parlamentar da Assembleia Nacional Constituinte, e no dia 11 de julho de 1987, um sábado, a Comissão de Sistematização iria votar o texto final do capítulo referente à questão agrária. A poderosa União Democrática Ruralista (UDR), então liderada pelo fazendeiro e latifundiário goiano Ronaldo Caiado, hoje governador de Goiás, havia programado uma grande manifestação na Esplanada dos Ministérios para pressionar os parlamentares a não votar um texto que permitisse a desapropriação para fins de reforma agrária das terras que não cumprissem a chamada função social. Quando cheguei para trabalhar, fui para a porta do Congresso para ver a passeata e relatar o acontecimento para a bancada do PCdoB, que eu assessorava. Assim que cheguei na calçada percebi que, na minha frente, estava o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, ainda na ativa, então lotado no Estado Maior das Forças Armadas, em Brasília.

A passeata passava e Ustra aplaudia e ia se empolgando. De repente, sem conter a empolgação, Ustra entra na passeata e segue em frente, marchando com os ruralistas.

Esbaforido, saí correndo pelo gramado central da Esplanada dos Ministérios, atrás de um fotógrafo, que registrasse a cena inusitada. Afinal, militares na ativa são proibidos de se manifestar politicamente.

Um pouco depois do Ministério da Justiça, acabei encontrando o fotógrafo Kim Ir Sen Pires Leal, da Agência Agil Fotojornalismo, e mostrei Ustra no meio da passeata. Ele fotografou Ustra em frente ao Ministério das Minas e Energia.

Chegando ao gabinete, telefonei para o Ricardo Noblat, que então dirigia a sucursal do Jornal do Brasil, o velho e bom JB, em Brasília, contei a história pra ele que, é claro, se interessou pelo assunto, comprou a foto da Ágil e publicou a notícia na página 5 da edição do JB de domingo, dia 12 de julho de 1987.

Por conta da matéria, Ustra cumpriu uns dias de cadeia, por transgressão ao RDE – Regulamento Disciplinar do Exército, que não permite manifestações políticas de oficiais na ativa, e logo depois passou para a reserva.

Tempos depois, comentei a história com Noblat, que não se lembrava dela, e comentou, com seu conhecido com humor: “Quer dizer que nós já prendemos o Ustra?”.

 

Moacyr Oliveira Filho, diretor de Jornalismo da ABI

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