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O dia depois (por Álvaro Vasconcelos)

É surreal considerar que a campanha de Harris foi dominada por uma agenda radical identitária

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Foto colorida de Kamala Harris. Ao fundo Joe Biden - Metrópoles
1 de 1 Foto colorida de Kamala Harris. Ao fundo Joe Biden - Metrópoles - Foto: Getty Images

No dia depois, após o choque telúrico da vitória de Trump, emergiu a narrativa de que a derrota de Kamala Harris se deve a uma transformação do Partido Democrata, mais centrado nas agendas a que chamam identitárias – direitos das minorias e das mulheres, luta contra o racismo – deixando a defesa da classe trabalhadora à extrema-direita. É surreal considerar que a campanha de Harris (e a Administração Biden) foi dominada por uma agenda radical identitária, o que obscurece as catastróficas consequências ideológicas da vitória da narrativa identitária de Trump, de choque das civilizações, de uma América ameaçada pela invasão dos imigrantes e “o inimigo interno” que põe em causa a sociedade patriarcal e cristã.

Uma vitória da contrarrevolução cultural, na sociedade do espetáculo na qual Trump é o bufón preferido e Elon Musk é o produtor. Em 2016, Trump venceu com um discurso nacionalista antiglobalização e ante elites, incluindo do Partido Republicano, mas nunca rompeu com as políticas neoliberais – o que, aliás, só começou a ser feito pela Administração Biden-Harris.

Em 2024, Trump venceu com um discurso racista propagando a mentira e o medo, apoiado na poderosa máquina de desinformação de Elon Musk e outros oligarcas. Venceu o “homem forte”, que cultiva a masculinidade tóxica e impune, que chamava de falsa negra estúpida à sua opositora e prometia fuzilar Liz Cheney. Putin, que promove a mesma ideologia machista, afirmou que Trump, quando o tentaram assassinar, atuou como “um homem”.

Nada mais impactante do que uma vitória, ainda mais tão significativa como foi a de Trump. Da vitória nasce a convicção de que a extrema-direita é que sabe como ganhar eleições e desvaloriza-se a defesa da democracia, da igualdade e dos direitos humanos que marcaram a campanha para a Presidência de uma mulher negra. As vitórias da extrema-direita alimentam a tentação populista, não só na direita tradicional, mas também na esquerda, como se viu com as posições do socialista Ricardo Leão.

Sublinhar o perigo de aceitarmos a leitura economicista da sociedade não põe em causa os fatores económicos da vitória de Trump, em particular os efeitos da inflação, no mundo pós-covid da invasão russa da Ucrânia, nem a desigualdade provocada pelo sistema financeiro global, mas sublinha os seus limites. É preciso assumir a humanidade plenamente, assumir que o ser humano não é só Homo economicus, mas que também se move por aspirações morais e culturais, como sublinha Amartya Sen, por uma poderosa aspiração à liberdade e à igualdade e por percepções, paixões e fantasmas.

No dia seguinte, com Trump no poder, continua ainda a ser mais essencial defender os direitos humanos e o Estado de direito. Os supremacistas brancos americanos pensam que chegou a sua hora. Dias depois das eleições, afro-americanos de vários estados norte-americanos receberam mensagens dizendo que iam ser “levados para plantações para trabalhar como escravos e colher algodão”.

Outra dimensão altamente preocupante da vitória de Trump é a leitura de que os projetos autocráticos são o sentido do vento da história, e que o modelo ditatorial chinês é capaz de enfrentar com sucesso, sem as fraturas das democracias que travariam a ação, os grandes problemas do nosso tempo, como as alterações climáticas. Essa leitura é particularmente popular no chamado Sul Global.

Resistir à tentação autocrática é hoje o verdadeiro universalismo. Os direitos humanos dos palestinos ou dos ucranianos são iguais aos das comunidades perseguidas nas sociedades democráticas, como os imigrantes, as mulheres, que veem os seus direitos ameaçados, ou as vítimas da injustiça social. Não podemos, porque Trump ganhou, aceitar o “anti wokismo” da extrema-direita; devemos ser capazes de integrar a defesa dos direitos humanos na luta pela justiça social e o clima estável.

É natural que, perante a situação apocalíptica que vivemos, o medo e a angústia se apoderem de muitos. Não podemos, no entanto, soçobrar perante a tentação niilista, nascida do ceticismo perante as incoerências do campo democrático e as derrotas dos candidatos que defendem os valores do iluminismo.

O que nos pode dar alguma esperança é que no mundo simultaneamente globalizado e fraturado não parou de crescer a consciência de um destino comum partilhado pela humanidade. Essa consciência traduz-se na emergência de uma sociedade civil global, que nos Estados Unidos é particularmente poderosa e que irá resistir às políticas reacionárias de Trump – será talvez o principal contrapoder que resta à democracia americana.

Hesitei em escrever sobre a minha esperança no despertar da União Europeia, como sucedeu na pandemia. Os fundamentos da UE são precisamente tudo o que Trump vai tentar destruir. Para sobreviver, a UE tem de assumir-se como ator fundamental de um projeto multilateral e humanista, procurando parceiros no Sul Global, nomeadamente na América Latina, para resistir a Trump e autonomizar a política em relação à China, um parceiro indispensável para enfrentar o desafio climático. Uma tal coligação mundial, sustentada pela partilha de um mesmo destino, pela certeza de que vivemos num só mundo, darão esperança à sociedade civil mundial, demonstrando que o futuro ainda tem futuro.

 

(Transcrito do PÚBLICO)

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