O caso das gêmeas luso-brasileiras e um remédio caro (Helena Pereira)
A cunha, afinal, era uma cunha
atualizado
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Ao fim de cinco meses, a Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) chegou à conclusão de que houve procedimentos irregulares no processo que levou ao tratamento de duas crianças luso-brasileiras com um medicamento de dois milhões de euros, o Zolgensma, no hospital público de Santa Maria, em Lisboa.
De forma clara, a IGAS concluiu aquilo que muitos portugueses intuíram desde a primeira hora, quando a TVI começou a noticiar o caso a 3 de novembro do ano passado, dias antes da demissão do então primeiro-ministro, António Costa, por causa da Operação Influencer.
O caso das gêmeas luso-brasileiras, recorde-se, começou com um e-mail do filho de Marcelo Rebelo de Sousa, e presidente da Câmara de Comércio Luso-Brasileira, para a Presidência da República, reencaminhado para o Governo e que acabou por chegar ao conhecimento do Ministério da Saúde, dos médicos de Santa Maria e do Infarmed.
A inspecção da IGAS centra-se na actuação do Infarmed e do Ministério da Saúde, repreendendo os dois por não terem cumprido as regras normais de tramitação, contrariando aquelas que foram declarações públicas tanto do ex-secretário de Estado da Saúde, Lacerda Sales, como do presidente do Infarmed, Rui Santos Ivo, que chegou a ser ouvido no Parlamento.
O país não tem de aceitar como natural uma cunha, nem desculpar, como fez, por exemplo, o bispo de Leiria-Fátima ao alegar que “cunhas que salvam crianças não fazem mal a ninguém”. Os portugueses têm o direito a saber como os hospitais públicos são geridos e ter razões para confiar que o acesso a cuidados de saúde é universal e que não há utentes de primeira e de segunda categoria. E, por isso, o trabalho da IGAS é louvável e vai sobretudo obrigar a mais rigor nos procedimentos.
Este é um caso que embaraça tanto o PS, que era governo na altura, como o PSD, que vê o Presidente da República, da sua cor política, arrastado para a polémica. Não é, pois, de estranhar que o Chega [partido de extrema-direita] volte a insistir com a necessidade de uma comissão de inquérito parlamentar e que os dois principais partidos estejam em silêncio. Já alargar o objecto da comissão a todas as situações em que possam estar em causa favorecimento ou “turismo de saúde” parece uma empreitada totalmente irrealista para uma comissão parlamentar de inquérito, embora se trate de um assunto sério e que gera preocupação entre as pessoas.
Convém não esquecer ainda que o Ministério Público investiga o caso das gêmeas também desde Novembro, ou seja, as responsabilidades políticas, pois, já estão claras e as judiciais estão a ser apreciadas no foro próprio.
O que este caso mostra, para além do retrato do país que somos, é que a celeridade com que se actua é também um valor em si mesmo, a bem de todas as instituições.
(Transcrito do PÚBLICO)