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O caminho das pedras e as pedras no meio do caminho (Hubert Alquéres)

A direita naufragou nos dois lados do canal da Mancha

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Nathan Posner/Anadolu via Getty Images
Apoiadores da Nova Frente Popular reúnem-se na Place de la Republique, em Paris, França, após a derrota da extrema direita nas eleições legislativas
1 de 1 Apoiadores da Nova Frente Popular reúnem-se na Place de la Republique, em Paris, França, após a derrota da extrema direita nas eleições legislativas - Foto: Nathan Posner/Anadolu via Getty Images

A direita naufragou nos dois lados do canal da Mancha. No lado britânico, os trabalhistas venceram as eleições para o parlamento com uma vitória esmagadora, enquanto o Partido Conservador sofreu a maior derrota de sua história e deixa o poder após 14 anos.

Já no lado francês, no segundo turno das eleições, operou-se um milagre. Após ter sido a mais votada no primeiro turno, a extrema-direita de Marine Le Pen caiu para o terceiro lugar, enquanto a frente de esquerda liderada por Mélenchon, da França Insubmissa, foi a mais votada. O centro do presidente Emmanuel Macron, em estado agônico após a primeira rodada, ressurgiu das cinzas, ocupando um segundo lugar. A aliança informal entre a esquerda e o centro evitou o mal maior, com 60% dos franceses dizendo não a uma extrema-direita raivosa e xenófoba.

Não há dúvidas, os resultados eleitorais dos dois países devem ser comemorados como uma vitória da democracia, um valor enraizado na Europa ocidental. Se os dois processos tem em comum a vitória de estratégias voltadas para barrar a ascensão da direita, eles guardam diferenças importantes e geram expectativas diferentes.

Até por ter uma maioria absoluta confortável – 412 cadeiras contra 121 dos conservadores – o Partido Trabalhista inglês inicia seu governo em um mar de relativa tranquilidade. Já a França mergulha em incertezas após a abertura das urnas de domingo.

O resultado britânico foi produto de dois fatores: de um lado, o fracasso do Brexit, responsável pelo aumento da inflação, desempenho raquítico da economia, desvalorização da moeda -a libra esterlina- e perda de protagonismo no cenário internacional. De outro, do aggiornamento do Partido Trabalhista sob a liderança de Keir Starmer, com uma importante inflexão ao centro.

Sob o comando de Jeremy Corbyn, a resposta dos trabalhistas ao Brexit foi uma guinada à esquerda, pregando a reestatização dos serviços públicos, das ferrovias e de outras “áreas estratégicas”, além de reversão de cortes dos gastos públicos. As concepções de Corbyn estavam mais próximas das ideias do Podemos da Espanha e do Syriza grego, agrupamentos de ultra esquerda.

Starmer encontrou o caminho das pedras ao fazer movimento idêntico ao do então primeiro-ministro e líder trabalhista Tony Blair, pai do “new labour”, pioneiro em trazer seu partido para uma posição mais moderada. Blair adotou um modelo social-liberal, diferenciando-se, assim, da social-democracia clássica. Guardadas as devidas proporções, a social-democracia brasileira seguiu o mesmo caminho, com Fernando Henrique Cardoso realizando um governo social-liberal.

Keir Starmer retoma o fio da meada defendendo o crescimento econômico com responsabilidade fiscal. Nesse sentido, aponta o caminho para as forças democráticas, como a estratégia mais eficaz para barrar a onda nacional-populista. O discurso do novo primeiro-ministro vai na direção da união dos britânicos, se comprometendo a “governar para todos”, redescobrir a identidade nacional e iniciar o grande “recomeço” da Grã Bretanha.

Já a França tem muitas pedras no meio do caminho, até reencontrar seu porto seguro. A Frente Republicana, aliança informal no segundo turno entre a esquerda e o centro, obteve êxito na construção de um cinturão suficientemente forte para derrotar a direita de Le Pen. Mas sua unidade parece ter se esgotado aí. A principal força da esquerda vitoriosa é a ala mais radical, a França Insubmissa liderada por Jean-Luc Mélenchon.  Em seu primeiro discurso o líder esquerdista descartou compor um governo em aliança com os “macristas”, voltando a prometer revogar a reforma da previdência implementada por Macron.

Entre suas propostas estão o aumento do salário mínimo em 15%, uma espécie de gatilho salarial de acordo com a inflação, congelamento dos preços dos alimentos, energia elétrica e combustíveis, além de um corte de 10% dos impostos incidentes na conta da energia. O cardápio levaria a um brutal aumento do déficit fiscal da França, que já é de cerca de 6% do PIB.

Com esse programa, é inviável qualquer composição entre a esquerda e o centro de Emmanuel Macron, embora esse seja o desejo dos franceses, manifestado nas urnas. A lógica recomenda uma inflexão do programa esquerdista, no sentido de torná-lo mais palatável e viável, além da esquerda ter a prudência de indicar para primeiro-ministro um político moderado.

Teoricamente há condições para isto, pois a Nova Frente Popular vitoriosa no segundo turno é heterogênea. Dos 182 parlamentares que elegeu no último domingo, 75 são da ultra radical França Insubmissa e 65 do Partido Socialista, força tradicionalmente mais moderada e eurocêntrica, Os Ecologistas, também mais moderados, elegeram 33 deputados. O grande obstáculo a uma saída virtuosa para o impasse francês é o jacobinismo de Mélenchon. Ele já bateu o pé contra essa possibilidade e quer a rendição pura e simples de Macron, com a indicação de um primeiro-ministro aliado ao programa da frente de esquerda.

A França pós-segundo turno é um país com um parlamento dividido em três forças, sem nenhuma delas ter a maioria absoluta. As possibilidades de um impasse são enormes. Tudo pode acontecer, até mesmo uma solução de alto custo político, com a convocação de novas eleições. Isso seria um atestado do fracasso de Macron, mas também da esquerda, por não terem sido capazes de se entender. O prolongamento da ingovernabilidade cobrará preço altíssimo. Engana-se quem pensa que a extrema-direita está morta. Ela pode voltar com força em um horizonte não muito distante, se a esquerda e o centro não se entenderem

O recado das urnas no segundo turno foi o do entendimento entre esses dois campos. Se a esquerda se embriagar com o sucesso, quem hoje canta a Internacional nas ruas de Paris amanhã pode derramar lágrimas e lágrimas, ouvindo o canto fúnebre da extrema-direita rediviva.

Há uma lição da história sobre a qual a esquerda francesa deveria refletir. Na eleição da Alemanha de 1932 Hitler não conquistou a maioria absoluta. Era possível barrar sua ascensão se a esquerda e o centro tivessem se entendido. Isto não aconteceu. Menos de um ano depois Hitler chegou ao poder e o fim dessa tragédia, conhecemos todos.

Não se deve subestimar as palavras de Marine Le Pen: “nossa vitória foi adiada por algum tempo”. Essa é a grande pedra ainda no meio do caminho da democracia, no país de Miterrand.

 

Hubert Alquéres é presidente da Academia Paulista de Educação e vice presidente da Câmara Brasileira do Livro. Foi Secretário Estadual de Educação em São Paulo.

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