O artifício é todo nosso (Por Miguel Esteves Cardoso)
Confundimos sempre os medos com as nossas percepções. Continuamos nas cavernas
atualizado
Compartilhar notícia
Gostava de ser tão velho que me lembrasse do burburinho que foi quando se inventou a fotografia, mas é como se fosse.
Lembro-me do terror que acompanhou o aparecimento da televisão, das casetes de áudio e vídeo, do computador pessoal, da Internet, e dos computadores de bolso a que chamamos “telemóveis”.
Agora é a inteligência artificial (IA). É diferente? Sim, diz-se sempre que é diferente. Mas a história é sempre a mesma: o roubo da nossa alma, acompanhado pelo desaparecimento de uma coisa que nos faz bem à alma.
A fotografia roubava-nos a alma, estampando com ela num papel. Fazia desaparecer os retratos feitos pelos pintores. A televisão roubava-nos a alma, enchendo-nos de lixo e fixando-nos em casa. Fazia desaparecer o teatro, a rádio e o cinema.
Confundimos sempre os nossos medos com as nossas percepções. Continuamos nas cavernas, a dar os primeiros passos para nos transformarmos em camponeses.
Cada coisa nova que aparece parece que nos vem comer.
A IA parece que vai comer trabalhadores, mas a única coisa que vai comer é trabalhos que ninguém gosta de fazer. Vai ser como a invenção da roda ou da máquina de lavar roupa: o ser humano passa a poder fazer um trabalho de que goste mais.
A IA é um retrato, uma imitação do cérebro humano. Assim como o retrato só dá mais valor à pessoa que foi retratada – mexe-se e fala e dança e faz amor –, a IA só chama a atenção para a maravilha que é o cérebro humano.
Veja-se tudo o que a Disney faz para imitar o movimento dos animais – e depois olhe-se para um gatinho a brincar com uma tampa de esferográfica. Não é espantoso o que um gatinho consegue fazer com uma simples tampa de esferográfica?
Ontem deliciei-me a ver em 3 minutos faz-te-foruardados, um filme chamado Bad CGI Gator em que se exagera a rasquice dos efeitos especiais para salientar o ridículo de um jacaré obviamente fictício.
É o que se está a fazer com a IA, esquecendo o que o artificial faz ao que é natural: endeusa-o.
(Transcrito do PÚBLICO)