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Nicarágua, a Revolução traída (Por Hubert Alquéres)

Lula decepciona ao se calar sobe ditadura de Daniel Ortega

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Presidência da Nicarágua/Cesar Perez/Handout via Reuters
foto do presidente da Nicarágua batendo continência. Ele veste um casaco azul e usa um boné da mesma cor
1 de 1 foto do presidente da Nicarágua batendo continência. Ele veste um casaco azul e usa um boné da mesma cor - Foto: Presidência da Nicarágua/Cesar Perez/Handout via Reuters

O escritor Eric Nepomuceno foi um entusiasta da Revolução Sandinista, desde o seu primeiro momento. Estava em um apartamento em Paris onde iria encontrar Regis Debray quando recebeu um bilhete do escritor francês, desculpando-se por faltar ao encontro porque estava partindo para a Nicarágua onde chegava ao fim a sanguinária ditadura de Anastasio Somoza. Por quarenta anos Somoza governou o país como se a Nicarágua fosse uma grande fazenda de propriedade de sua dinastia.

O entusiasmo de Nepomuceno foi compartilhado pela esquerda latino-americana. A vitória da Frente Sandinista de Libertação Nacional, em 19 de julho de 1979, acalentava a utopia de construção do socialismo em uma sociedade pluralista e democrática. Esse era o sentimento do escritor argentino Júlio Cortázar. Naqueles verdes anos da revolução, Cortázar escreveu o livro “Nicarágua tão violentamente doce”.

Seis meses após a tomada do poder, Eric Nepomuceno estava na Nicarágua. Daquela época lembra-se dos ares de assombro de Cortázar em uma visita a uma escola onde crianças calçavam sapatos pela primeira vez na vida e aprendiam a ler e a escrever. O escritor brasileiro também se recorda de quando os sandinistas perderam a eleição, em 1990, para Violeta Chamorro e “souberam perder com dignidade”. Ali a alternância do poder se materializou. A democracia parecia ser um legado deixado pelos sandinistas.

Mas tudo isso é passado. O próprio Nepomuceno desencantou-se com os rumos da Nicarágua após o retorno dos sandinistas ao poder, em 2007. Em artigo intitulado “Uma história de traição” define o regime como uma ditadura dinástica do casal Daniel Ortega e Rosário Murilo, tão sanguinária como a de Somoza.

Segundo ele, o ditador inaugurou “um dantesco espetáculo de traição”, prendendo e torturando adversários – na última eleição sete candidatos a presidente foram presos -, e até mesmo antigas lideranças da Revolução Sandinista: “Primeiro um comandante sandinista heroico, Hugo Torres, morreu num hospital depois de ter ficado preso em condições desumanas durante meses e meses. Poucos dias depois, Dora Maria Téllez, a ‘Comandante Número Dois’ da mesma Frente Sandinista, foi levada a julgamento e condenada a oito anos de prisão. Detalhe: ela só conheceu o advogado de defesa no tribunal, ele não teve acesso aos autos do processo, Dora pôde falar por escassos quatro minutos e foi interrompida pelo juiz três vezes”.

“As revoluções são como Saturno, comem os próprios filhos”. Danton e Marat na revolução francesa, Trotsky na revolução russa. Não foi diferente com a Sandinista. A ditadura de Ortega prende e persegue antigos guerrilheiros que combateram a ditadura de Somoza. Uma das lideranças da Frente Sandinista, Sérgio Ramirez, em cuja casa Lula conheceu Fidel Castro em 1980, vive hoje no exílio. É um dos 317 opositores de Ortega que tiveram sua nacionalidade cassada, transformados em apátridas. O ditador inspirou-se em Pinochet, que também cassou a nacionalidade de opositores chilenos.

Sérgio Ramirez, autor do livro “Adios Muchacho” e vice-presidente da Nicarágua nos primórdios da Revolução Sandinista, recebeu, como escritor, o prestigiado Prêmio Cervantes de 2017. Em entrevista recente ao G1, Ramirez afirmou “ser muito desconcertante o silêncio de Lula sobre Ortega”.

No rol dos desafetos da ditadura estava também o já falecido poeta e sacerdote Ernesto Cardenal, um ícone da Teologia da Libertação e uma das lideranças da Revolução Sandinista.

A ditadura nicaraguense encontra-se isolada mundialmente. Recentemente foi alvo de críticas até do Papa Francisco. A reação do ditador Ortega veio a galope: fechou a embaixada do Vaticano e a Nunciatura Apostólica de Manágua.

Apesar do rechaço internacional ao regime nicaraguense, parte da esquerda brasileira continua presa a uma lealdade distorcida. Em nome de uma suposta “causa anti-imperialista” relativiza princípios, entre eles o da democracia como valor universal. Adota uma posição esquizofrênica: condena o 8 de janeiro brasileiro, no que está correta, mas defende as ditaduras “amigas”.

Nesse escopo enquadra-se Lula e o Partido dos Trabalhadores. O governo brasileiro recusou-se, na reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU, a assinar manifesto de 55 países condenando a ditadura de Daniel Ortega. Em vez disso, adotou uma posição amorfa manifestando suas preocupações com “graves violações aos direitos humanos e de restrições ao espaço democrático naquele país”, e, ao mesmo tempo, se comprometendo a adotar uma “postura construtiva e de diálogo” com a ditadura nicaraguense.

É uma postura tão insustentável que já gera fissuras no campo da esquerda. A começar no próprio PT. Vozes isoladas, como a de Alberto Cantalice, da direção nacional, e de Tarso Genro, qualificaram o regime nicaraguense como uma ditadura. Sem falar em intelectuais como o próprio Eric Nepomuceno e Celso de Barros, autor do livro “PT, uma história”.

Mas a esquerda brasileira está longe de adotar postura similar à do presidente chileno Gabriel Boric, de críticas a ditaduras de esquerda do nosso continente, como Cuba e Venezuela. Continua prisioneira de uma categoria mental que a leva a ser contundente na denúncia de violações de direitos humanos quando praticados por ditaduras de direita, e a se omitir quando essas mesmas violações são cometidas por “ditaduras de esquerda”. E tem a pretensão de se dizer democrática.

 

Hubert Alquéres é membro da Academia Paulista de Educação, do Conselho Estadual de Educação e da Câmara Brasileira do Livro. É diretor do Colégio Bandeirantes. Foi Secretário de Educação no Estado de São Paulo, professor do Instituto Mauá de Tecnologia e da Escola Politécnica da USP.

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