Nem conservador, nem progressista (por Mary Zaidan)
Como na política, também nos costumes o Brasil é um país dividido ao meio
atualizado
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Dá-se como certo que o Brasil é majoritariamente conservador e até moralista. Que repudia a descriminalização do aborto, o uso recreativo da maconha ou a união homoafetiva, questões associadas à progressistas. Uma visão distorcida que ganhou mais vigor nos tempos do ex Jair Bolsonaro. A realidade é bem outra. Como na política, há tempos polarizada, também nos costumes o Brasil é um país dividido ao meio.
Embora seja o quarto país que menos aprova a legalização do aborto entre as 29 nações incluídas na pesquisa Ipsos Global Views on Abortion 2023, divulgada em setembro, o Brasil registrou empate técnico entre os 43% contra e os 39% a favor do direito à interrupção da gravidez em qualquer circunstância. Considerando eventos específicos, o apoio ao aborto cresce, atingindo 70% quando a gravidez advém de estupro, 66% se a mãe corre risco de vida e 50% cravados se há chances de a criança nascer com sérios problemas de saúde, casos previstos parcialmente na legislação brasileira.
Em junho, o mesmo Instituto Ipsos divulgou a Global Advisor – LGBT+Pride 2023, realizada em 30 países, reunindo 22 mil entrevistas, mil delas com brasileiros. A pesquisa aponta que 51% são favoráveis ao casamento homoafetivo e 69% apoiam que casais do mesmo sexo possam adotar filhos. A margem de erro da Ipsos tanto para o direito ao aborto quanto para união homoafetiva é de 3,5 pontos percentuais.
A descriminalização do porte de maconha para uso pessoal, cujo debate está em curso no Supremo e no Senado, é aprovada por 53% dos entrevistados pelo PoderData, em pesquisa realizada no final de setembro. No mesmo levantamento, 61% disseram ser contrários à liberação de todas as drogas, algo que nunca esteve em discussão no país. A margem de erro é de 2 pontos percentuais.
O porte de armas de fogo por civis também divide: 49% contra, 48% a favor, segundo a PoderData, em pesquisa realizada em julho de 2022. Já o DataSenado, em levantamento no início deste ano, mostra que 60% discordam de que a posse de armas aumentaria a segurança no Brasil.
A direita faz barulho com esses temas, mas as margens são tão apertadas que seus parlamentares preferem não colocá-los em propostas plebiscitárias. Ainda assim, conseguem encurralar a esquerda. Líderes conservadores, bolsonaristas à frente, batem no peito para pregar contra o direito ao aborto, a liberação da maconha e o “casamento gay”, título com falsa conotação religiosa que conferem aos direitos civis assegurados aos LGBTIA+, como se a luta fosse para que padres, pastores e rabinos consumassem a união homoafetiva.
Esbravejam como se falassem para uma maioria sólida, multiplicam bordões nas redes sociais e, pacientemente, vão colhendo êxitos. De acordo com a Ipsos, em apenas um ano a rejeição ao aborto em qualquer circunstância cresceu 9%.
Acuada por essa turma e pelo alarido insistente de que o Brasil é conservador por natureza – falácia que as pesquisas desmontam -, a ala progressista foge do debate. Nas campanhas eleitorais e no próprio Parlamento, seus líderes tergiversam ao serem indagados sobre essas questões. Dão respostas dúbias, entregam os pontos. Temem empunhar as bandeiras em que dizem crer. Um comportamento covarde, no mínimo estranho, para um grupamento que, recentemente, venceu importantes rounds no convencimento público.
O caso mais simbólico é o da educação domiciliar (homeschooling), um dos eixos da direita no mundo e no Brasil, encampada de corpo e alma pelo bolsonarismo. A campanha contrária foi tamanha que a pauta praticamente não saiu do lugar, sendo rejeitada por oito em cada dez brasileiros, de acordo com pesquisa Cesop/Unicamp e Instituto Datafolha, realizada em maio do ano passado. Mais: dos 2.090 entrevistados, 99,3% concordaram que ir à escola é importante para as crianças, e 90%, que as crianças têm o direito de frequentar a escola mesmo contra a vontade de seus pais.
A ação coordenada de educadores e políticos gerou uma rejeição tão forte que a direita “esqueceu” o tema nos escaninhos da Câmara, onde chegou a protagonizar debates ferrenhos.
Como se vê, é um país dividido. Sem maiorias para um lado ou outro, embaladas por autoritários e moralistas ou pelo viés religioso; por oportunistas e líderes escorregadios, por fé ou descrença. Sua equação é um desafio político: os brasileiros são mais progressistas do que a direita tenta fazer crer e mais conservadores do que a esquerda gostaria.
Mary Zaidan é jornalista