Votantes “divididos”, opinião pública nem tanto
Entrevista com Antonio Lavareda, sociólogo e presidente do Ipespe
atualizado
Compartilhar notícia
O Brasil saiu mesmo dividido dessa eleição ?
Essa afirmativa virou mantra nos meios de comunicação. De fato, o país assistiu uma apuração eletrizante. Com Lula eleito pela terceira vez por uma margem reduzida, um ponto percentual e oito décimos, quase a metade do que havia sido até então a menor distância entre dois finalistas, os 3,4 pontos de Dilma sobre Aécio em 2014. Nas outras sete disputas da Nova República, a margem sempre esteve acima de dez pontos, sendo que Fernando Henrique Cardoso conseguiu ganhar em duas oportunidades (1994 e 1998) no primeiro turno com larga dianteira sobre o mesmo Lula, em ambas ocasiões . Ocorre que as urnas medem aquela grande parte do eleitorado que comparece para votar, porém não o total dele, que corresponde ao que chamamos de opinião pública. Nesse caso, a constatação seria um pouco diferente.
Mas, essa vitória apertada de Lula não lhe trará problemas no governo?
Numa eleição onde a norma foi a continuidade, com 19 dos 20 governadores candidatos sendo reeleitos, o sucesso dele contra o incumbente por si só foi muito impactante. Não há problema nessa margem estreita. A contabilidade da eleição em boa medida ficou para trás. O significado dessa vitória é bem maior. A lua de mel do mercado – Bolsa e Dólar – demonstra isso. A receptividade do mundo político ao novo governo, também. Lembremos que nesse mundo polarizado resultados assim são frequentes. Na primeira eleição (2008), Joe Biden ganhou de McCain por 3,6 pontos. Hillary venceu Trump, no voto popular, por 2,1 pontos. E a vitória de Biden defenestrando Trump, embora mais dilatada, não ultrapassou 4,4 pontos. Aqui perto, na Colômbia, o esquerdista Gustavo Petro venceu o populista de direita Rodolfo Hernandes por três pontos; no Peru, Pedro Castillo derrotou Keiko Fujimore por menos de um ponto percentual; e no Uruguai, o direitista Lacalle Pou derrotou, em 2019, por apenas 1,6 pontos, Daniel Martinez , candidato da Frente Ampla de centro-esquerda que estava no poder há quinze anos. Mais distante, na Polônia, dois anos atrás, o presidente Andrzej Duda, de extrema direita, foi reeleito com uma margem de apenas dois pontos sobre o adversário da coligação democrática, Rafak Trzakowsk. Alguém ouviu falar em instabilidade nesses países atribuída ao placar apertado da vitória?
De qualquer forma, no Brasil isso não tinha precedentes.
É verdade. Resultados assim ainda nos parecem “estranhos”. Não são comuns na nossa história. Na 1ª República, das onze eleições diretas que tivemos, todas com muita fraude, apenas três podem ser consideradas competitivas. Sendo que por “competitivas” entenda-se os candidatos da oposição conseguindo chegar no máximo a 40% dos votos, ou algo próximo a isso. Rui Barbosa foi o primeiro, em 1910; depois Nilo Peçanha, em 1922; e, por fim, Getúlio Vargas, em 1930, cuja derrota daria lugar à Revolução que o levaria ao Poder. Na 4ª República, no pré-1964, com disputas mais equânimes, nas quatro eleições havidas o único que obteve menos de 15 pontos de distância do segundo colocado foi Juscelino Kubitschek, o mais festejado presidente na memória daquele período, que marcou 5,5 pontos sobre o General Juarez Távora.
Mas por que a frase “País dividido ao meio”, do ponto de vista da opinião pública, não é exatamente verdadeira?
É que a contabilidade das urnas, embora seja objetivamente o que conta para a outorga dos mandatos, nem sempre reflete rigorosamente a proporção dos respectivos apoios no conjunto do eleitorado, o equivalente à Opinião Pública. A abstenção – aquela parte do eleitorado que não participa do pleito -, às vezes, ajuda a explicar o seu resultado. No nosso caso, esse ano seus efeitos assimétricos que mostramos em um artigo após o primeiro turno , “Triplo Carpado em Piscina Vazia” no Caderno Ilustríssima da Folha de São Paulo, não desapareceram simplesmente na segunda volta. Embora tenha havido, e acredito que os dados que ressaltamos contribuíram para isso, um grande esforço para impedir o crescimento da abstenção do primeiro para o segundo turno. O que resultou numa inédita redução, de 0,38 %, do não comparecimento. Mas não impediu que 32 milhões de brasileiros continuassem distantes da seção eleitoral. Entre eles, como mostra o TSE, o contingente largamente predominante é composto por pessoas de baixa escolaridade. A elevadíssima correlação negativa entre abstenção e nível de instrução no primeiro turno chegou a -0.87. Essa ausência, em grande parte por falta de condições objetivas e subjetivas, pode ser denominada de “abstenção compulsória”. Um problema sobre o qual a sociedade e o Estado devem refletir, não só porque isso colide com o instituto da obrigatoriedade do voto estipulado pela Constituição, mas também porque não ajuda o nosso sistema político termos cerca de três dezenas de milhões de brasileiros, na grande maioria pobres, afastados do momento chave do processo democrático que é a escolha dos seus governantes.
E como as pesquisas podem nos dizer como teriam votado os que não votaram?
Os levantamentos, conforme discuti no artigo citado, apontaram razoavelmente bem o tamanho das preferências pelos candidatos no primeiro turno. Mas não lograram apreender a provável abstenção, que prejudicava notadamente o candidato Lula, pela grande concentração de seus eleitores na base da pirâmide social. No segundo turno, os institutos fizeram um grande esforço para tentar identificar os prováveis eleitores. Sem voto útil e numa situação binária, embora continuando a valer a máxima de que “pesquisas não são prognósticos” os resultados das urnas se aproximaram dentro da margem de erro, quando não coincidiram, com a grande maioria dos dados anunciados pelos institutos, independente da metodologia utilizada. Nossa rodada final do Termômetro da Campanha, um projeto IPESPE/ ABRAPEL, foi divulgada na terça feira, cinco dias antes do pleito. E o que revelou a nossa última pesquisa ? Usamos três perguntas adaptadas do modelo Perry-Gallup, para tentar identificar a abstenção. Dessa forma, podemos verificar como as margens se estreitavam sob o efeito de cada um dos fatores. Lula tinha seis pontos de vantagem sobre o adversário, 53% a 47% dos “válidos” . Quando considerados apenas os indivíduos mais interessados como tendo maior chance de comparecimento, o placar estreitava para 52% a 48%. O fator distância do local de votação também foi considerado. Entre os que residiam perto das seções eleitorais, o placar repetia os 52% a 48%. Por último, a variável cujo cruzamento mais se aproximaria do resultado da eleição (“Com certeza vai votar?”) gerou o placar de 51% X 49%, arredondando, o número do TSE. Dos eleitores de Bolsonaro, na média com níveis mais elevados de renda e escolaridade, 89% tinham absoluta certeza de que iriam votar, número que caia para 82% entre os de Lula. Como se vê, tal como no primeiro turno, mais uma vez a abstenção penalizou o ex-presidente.
Sim. Mas como saber como teriam votado os 20,53% que não compareceram?
Não é difícil. O perfil da abstenção do segundo turno certamente replicou o do primeiro. E é legítimo atribuirmos a cada estrato de escolaridade nesse grupo a mesma preferência pelos candidatos expressa por eles nas pesquisas. Uma vez calculado isso, vê-se que nesse subconjunto do eleitorado Lula teria obtido 61% contra 39% de Bolsonaro. Portanto, se adicionada a provável preferência desse contingente à que se manifestou nas urnas, obtendo-se então a totalidade do eleitorado, da cidadania, de toda a opinião pública, teríamos um placar final de 53% versus 47%. Isso sem computarmos as intenções de voto eventualmente perdidas pelo eleito também nos votos nulos (3,2% dos votantes) , que não são propriamente uma expressão de desilusão desses mais de 3 milhões e 900 mil eleitores. Os nulos decorrem em grande medida de erros, posto que não há tecla para anular votos. Erros prevalecentes entre os indivíduos com baixa escolaridade. Pelo que se conclui que tivemos uma eleição acirrada, bastante competitiva, mas a sociedade não estava propriamente rachada ao meio.
Se, como você mesmo disse, a contabilidade do resultado em termos práticos já ficou para trás, tem importância a distinção entre votantes e eleitorado/opinião pública ?
Tem sim. Em pelo menos duas dimensões. Numa delas, o caráter histórico que 2022 assumiu fará com que a Ciência Política se debruce sobre seus detalhes indefinidamente. Por outra, não se pode esquecer que os governantes, uma vez obtido o mandato nas urnas, devem ter seus olhos fitos na Opinião Pública, que Shakespeare ao seu tempo já havia referido como “a mais alta soberana do êxito”. Nesse terreno, cada ponto a mais ou a menos de aprovação faz muita diferença. Bolsonaro nunca alcançou os 50% que o Gallup aponta como imprescindíveis para a reeleição de um incumbente. Biden, hoje com apenas 40% de aprovação, verá esse número traduzido em um resultado provavelmente adverso na eleição intermediária americana desta terça feira, oito de novembro. Independente de altos e baixos conjunturais, a literatura mostra que a porção mais importante da aprovação que um governante desfruta ao longo do seu quatriênio é aquela que o acompanha desde a eleição. Nessa direção, em um Brasil polarizado como nunca, mais do que uma boa noticia, é relevante para as forças vitoriosas o fato de que, além dos que quiseram ou puderam votar em Lula, há outros milhões de eleitores que o apoiavam, mesmo sem terem registrado seu número nas urnas.