metropoles.com

Não temos paz (por Mary Zaidan) 

Os terríveis conflitos lá fora deveriam nos fazer mais humanos, nos obrigando a cuidar das nossas vítimas

atualizado

Compartilhar notícia

Google News - Metrópoles
Hugo Barreto/Metrópoles
Indígena - Metrópoles
1 de 1 Indígena - Metrópoles - Foto: Hugo Barreto/Metrópoles

Hoje é Dia do Professor; amanhã, 16 de outubro, Dia Mundial da Alimentação. Datas simbólicas, importantes, mas difíceis de serem comemoradas em um Brasil que falha feio em ambas as áreas. Faltam apreço, respeito e reconhecimento aos mestres, muitos deles submetidos a condições para lá de precárias. Falta comida nesta que é uma das maiores potências agropecuárias do planeta, incapaz de garantir segurança alimentar a 32% de sua população – 70,3 milhões de brasileiros, 21 milhões vítimas de fome.

O país tem 2,2 milhões de professores, 1,37 milhão no ensino básico, 516 mil no médio e 323 mil no superior. Na primeira etapa, as mulheres são maioria absoluta – 77,5%, segundo o último Censo Escolar do Inep, realizado em 2022. A remuneração varia entre municípios e estados, a partir do piso de R$ 4,4 mil por 40 horas semanais, não raro desrespeitado.

Nas grandes cidades, docentes reclamam de descaso e desinteresse dos alunos. E de violência, incluindo relatos de ameaças à integridade física. Isso justifica a queda de interesse pela profissão. Dados do questionário anexo ao Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade 2021) apontam que 20% dos alunos do quinto ano dos cursos de licenciatura do país não querem ser professores.

Ao déficit de interesse soma-se a má qualidade da formação para o magistério, com cursos cada vez mais precários, muitos deles ministrados integralmente à distância, com impactos irrecuperáveis na educação das crianças e jovens.

O combate à fome, bandeira empunhada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva desde o seu primeiro mandato e que continua sendo tecla central de suas falas nos fóruns mundiais, ainda não pegou no tranco no Lula 3. A produção e a exportação de alimentos do país continuam batendo recordes, e a fome não cede.

Para além do Bolsa Família – ampliação do Bolsa-Escola do antecessor Fernando Henrique Cardoso, rebatizado pelo ex Jair Bolsonaro e retomado por Lula com o nome original -, não se viu novidade nas políticas públicas para estancar a insegurança alimentar. Prova disso são os discursos oficiais: Lula continua citando os mesmos 30% de brasileiros que não fazem três refeições por dia. Número idêntico ao que criticava nos palanques da campanha eleitoral, há um ano.

O PT, que dirige o país pela quinta vez, brada e bate no peito ao dizer que tirou o Brasil do Mapa da Fome elaborado pela ONU. É verdade. O país chegou a sair desse perverso ranking em 2014. Mas voltou a figurar nos relatórios um ano depois, em 2015, durante a gestão de Dilma Rousseff. Em 2020, a pandemia fez o quadro se agravar ainda mais.

Números e percentuais, mesmo tão graves quanto os da fome no Brasil, têm o dom de despersonalizar o problema e, assim, reduzi-lo. As crianças ianomâmis em pele e osso falam mais alto do que 9,9% de brasileiros famintos. Ou que o genocídio de povos originários, com nada menos do que 800 indígenas assassinados durante o governo Bolsonaro, conforme informa o relatório anual do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), divulgado em julho deste ano.

Costumamos nos ocupar com problemas distantes desviando os olhos do nosso quintal. Na última semana, a invasão da Rússia à Ucrânia, que já dura 19 meses, perdeu audiência para o ataque bárbaro dos terroristas do Hamas em Israel e a contra-ofensiva em Gaza. Natural que assim seja. Melhor seria se os terríveis conflitos lá fora nos fizessem mais humanos e nos obrigassem a cuidar de nossas vítimas.

Faltam condições mais dignas para os professores, falta educação básica. Falta comida no país que é um dos líderes na produção de alimentos. Sobram sem-vergonhice e corrupção. Sobram pobreza e miséria; sobra violência. Dez das 50 cidades mais letais do mundo estão no Brasil. Ostentamos a vexaminosa oitava posição em número de assassinatos – 40,8 mil em 2022, quase 19,7 mil só no primeiro semestre deste ano. Duas dezenas de crianças mortas por balas perdidas. Não temos guerras, mas não temos paz.

Mary Zaidan é jornalista 

Compartilhar notícia

Quais assuntos você deseja receber?

sino

Parece que seu browser não está permitindo notificações. Siga os passos a baixo para habilitá-las:

1.

sino

Mais opções no Google Chrome

2.

sino

Configurações

3.

Configurações do site

4.

sino

Notificações

5.

sino

Os sites podem pedir para enviar notificações

metropoles.comBlog do Noblat

Você quer ficar por dentro da coluna Blog do Noblat e receber notificações em tempo real?