Não se dialoga com golpistas
A forte reação da sociedade a Jair Bolsonaro deixa claro que não há diálogo possível com quem pretende destruir a democracia
atualizado
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Editorial de O Estado de S. Paulo (8/8/2021)
A forte reação da sociedade e das instituições democráticas aos arreganhos golpistas do presidente Jair Bolsonaro dos últimos dias deixa claro que não há diálogo possível com quem pretende destruir a democracia brasileira.
A inaudita decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luiz Fux, de cancelar uma reunião com Jair Bolsonaro, que havia sido marcada a título de fomentar uma aproximação entre os Poderes, resultou da singela constatação de que o presidente, cuja indecorosa trajetória política se notabilizou pelo confronto e pela ofensa, não quer conversa, como jamais quis.
Não foi por falta de esforço. Em dois anos e oito meses de mandato, houve vários encontros de chefes do Judiciário e do Legislativo com Bolsonaro na expectativa de que esse diálogo fosse moderar o presidente. Em vão: Bolsonaro não existiria, como político, se não fosse seu comportamento iracundo e irresponsável, sempre em franco desafio às normas e leis – sejam os regulamentos militares que ele violou quando esteve no Exército, seja a Constituição que ele desrespeita todos os dias.
Depois de inúmeras agressões de Bolsonaro às instituições democráticas, a linha vermelha parece ter sido afinal cruzada quando, na quarta-feira passada, o presidente ameaçou explicitamente agir à revelia da Constituição, perturbando as eleições de 2022 para impor suas vontades. Ao fazê-lo, espalhando informações comprovadamente falsas a respeito do sistema de votação, ofendeu ministros do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral, além de colocar em dúvida a honestidade dessas Cortes.
Esse comportamento delinquente do presidente levou 250 personalidades dos setores financeiro, cultural e acadêmico a lançar um importante manifesto em defesa da realização das eleições do ano que vem e do respeito a seus resultados. Centenas de pessoas aderiram à mensagem, que diz que um “futuro mais próspero e justo” só será possível “com base na estabilidade democrática”.
Com Bolsonaro no poder, contudo, não haverá estabilidade. A todo momento, o presidente inventa pretextos para agredir instituições democráticas e desorganizar o País. Agora é uma inexistente insegurança das urnas eletrônicas, supostamente relatada, segundo Bolsonaro, por um inquérito da Polícia Federal – que, conforme esclareceu o TSE, já concluiu que “nada de anormal ocorreu”. Antes, foi a decisão do Supremo sobre as competências de União, Estados e municípios no combate à pandemia, que Bolsonaro classificou como “crime”.
Ante o derretimento de sua popularidade e de suas imensas dificuldades políticas, é certo que Bolsonaro, ao mesmo tempo que entrega o governo ao fisiologismo do Centrão, vai tramar situações para criar ainda mais tumulto, pois a estabilidade, ao baixar a maré, deixaria evidente sua monumental mediocridade como político e como governante.
A próxima crise já está contratada: no dia 29 de setembro, o Supremo retoma o julgamento do recurso interposto por Bolsonaro para não ter que depor pessoalmente no inquérito que apura sua suposta interferência na Polícia Federal, denunciada pelo ex-ministro da Justiça Sérgio Moro.
Conforme o único voto proferido até agora, do ministro Celso de Mello, já aposentado, Bolsonaro, na condição de investigado, não pode escolher como depor. “O postulado republicano repele privilégios”, escreveu Celso de Mello em seu voto. Mantido o princípio de que ninguém está acima da lei, ao contrário do que pensa Bolsonaro, é provável que o presidente sofra novo revés no Supremo.
Até aqui, as seguidas derrotas de Bolsonaro no Supremo e no Congresso – a mais recente foi a derrubada do famigerado projeto que instituiria o voto impresso – foram incapazes de fazê-lo recuar. Ao contrário: o presidente as transforma em provas de que é vítima de “pessoas que desejam a cadeira do poder por ambição”, como disse em recente discurso.
Na mesma ocasião, Bolsonaro lembrou a Canção do Exército, ao dizer que, “se a Pátria amada for um dia ultrajada, lutaremos sem temor”. Ultraje à Pátria – e à democracia – é a presença de Jair Bolsonaro na Presidência da República.