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Merkel fará falta (Por Hubert Alquéres)

Se a União Europeia sobreviveu a tantas tempestades, deve muito a ela. Sim, foi a âncora em um período da história extremamente conturbado

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Angela Merkel, chanceler alemã
1 de 1 Angela Merkel, chanceler alemã - Foto: Redes Sociais/ Reprodução

Após 75 anos, os alemães irão às urnas no próximo domingo sem que seu primeiro-ministro dispute a eleição. Depois de 16 anos no poder, Angela Merkel sai do palco político para entrar para a história. Em um mundo marcado por forças centrífugas – xenofobismo, racismo, isolacionismo, crise migratória, entre outras – Merkel fez a diferença.

Se a União Europeia sobreviveu a tantas tempestades, deve muito a ela. Sim, foi a âncora em um período da história extremamente conturbado. Seu estilo moderado e paciente, muitas vezes injustamente interpretado como vacilante, foi o necessário contraponto a lideranças conflitivas como Donald Trump, Boris Johnson ou Vladimir Putin.

O movimento nacional-populista que levou ao Brexit e a emergência de uma extrema-direita em vários países do continente, encontrou na primeira-ministra da Alemanha seu dique de contenção. Ela sempre soube ser dura quando necessário. Assim foi na crise financeira internacional de 2008, quando condicionou a ajuda financeira da União Europeia à Grécia e outros países a um duro ajuste fiscal. À época, até Barack Obama pediu que ela fosse mais flexível em relação às exigências aos gregos. Não cedeu e assim salvou a própria União Europeia e sua moeda.

Como Oto Von Bismarck, foi chamada de Chanceler de Ferro, por sua determinação. Navegou contra a maré na crise migratória da Europa em 2015, a pior desde a Segunda Guerra. Enquanto países vizinhos construíam muros para impedir a entrada de imigrantes que fugiam de guerras ou da fome, a primeira-ministra se dispôs a receber 450 mil deles, por considerar aquela como uma crise humanitária. No final de 2019 a Alemanha era o país europeu que mais abrigou refugiados: um milhão e 150 mil, metade deles vindo da Síria.

Recebeu críticas de outros países europeus e por causa disso viu emergir no seu próprio país uma extrema-direita xenófoba e com traços neonazistas, representada pela Alternativa para a Alemanha. Mas fez o certo e a história está lhe dando razão. Não há o menor perigo da extrema-direita voltar ao poder na eleição de domingo. A Alternativa para a Alemanha vem perdendo densidade eleitoral, devendo ficar em quarto ou quinto lugar na composição do Parlamento alemão.

Foi uma liderança previsível mas, em um mundo profundamente instável e em convulsão, a previsibilidade é virtude. Teve o dom da conciliação, de buscar soluções negociadas para grandes impasses. Negociou com a Inglaterra um Brexit menos traumático, com Vladimir Putin uma saída para a crise com a Ucrânia; e construiu consensos internos e na União Europeia.

Em aliança com Emmanuel Macron foi o grande freio à onda eurocética que varreu o continente, após a vitória de Trump nos Estados Unidos e do Brexit na Inglaterra. A sobrevivência da União Europeia mostrou sua importância com o advento da maior crise sanitária mundial desde 1919, quando se tornou necessária uma resposta conjunta do bloco.

Enquanto Trump pregava o negacionismo, Angela Merkel levou a pandemia a sério, manteve a população bem-informada e adotou as medidas sanitárias recomendadas por especialistas. Sua condução firme no combate à Covid 19 foi reconhecida pelos alemães, com a aprovação do seu governo chegando à casa de 80%.

A ortodoxia econômica que marcou sua atuação na crise financeira internacional de 2008 daria lugar a uma outra postura diante da necessidade da reconstrução da Europa no pós pandemia, articulando um pacote de mais de 750 bilhões de euros voltados para a ajuda aos países do bloco. O eurocentrismo sairá da pandemia fortalecido, enquanto os eurocéticos perdem terreno.

A Alemanha marcha hoje para a economia de baixo carbono, com 48% de sua energia sendo produzida de forma limpa: eólica e solar. As treze usinas nucleares que existiam foram fechadas em seu governo. E as térmicas com base no carvão vêm sendo substituídas por fontes renováveis.

Merkel é uma estadista de centro-direita, portanto conservadora, assim como era conservador outro político alemão democrata cristão que também fez história: Konrad Adenauer, o pai da reconstrução da Alemanha pós Segunda Guerra Mundial. Mas não faz dos seus valores conservadores um dogma. Surpreendeu, por exemplo, ao criar as condições para aprovar em seu país o casamento de pessoas do mesmo gênero.

Carinhosamente chamada de “mutti” (mãe) pelos alemães e de um estilo de vida simples e discreto, é um caso raro de mandatário no auge da carreira política que sai do palco para se dedicar à vida privada. Com o seu recolhimento, fecham-se as cortinas da era Merkel. Fará muita falta em mundo que ainda não exorcizou plenamente os demônios da intolerância, do racismo e da xenofobia.

Hubert Alquéres é membro da Academia Paulista de Educação, da Câmara Brasileira do Livro e do Conselho Estadual de Educação.

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