Malditos os bem-afortunados (Por Miguel Esteves Cardoso)
Faz-me lembrar um velho conselho do mundo do teatro: trata bem as pessoas que fores encontrando enquanto vais subindo na profissão…
atualizado
Compartilhar notícia
Há quem trate bem os mais afortunados e mal os menos afortunados. Explicam-se dizendo que estão apenas a ser interesseiros: os primeiros podem melhorar-lhe a vida, mas os outros, não.
E há quem não ligue a isso de ser mais ou menos afortunado e trate toda a gente da mesma maneira – o que, além de recomendável, é garantia de canonização.
Outros fazem questão de tratar mal tanto os mais afortunados como os menos afortunados.
E depois há a maioria – Deus queira que seja a maioria –, que trata melhor os menos afortunados e um bocadinho pior os mais. São praticantes da compensação: “Ah, tiveste azar na vida? Então, vou tratar-te um bocadinho melhor.”
Seja como for, há nestes comportamentos duas considerações. A primeira é que a sorte e o azar existem mesmo. A pessoa que nasceu rica, bonita, inteligente, saudável, bondosa e bem humorada teve muita sorte: uma sorte que não fez nada por merecer.
Existe, por isso, uma escala, muito concreta e irrefutável, de sortes e azares.
O pior é que essa escala é relativa: há sempre muita gente menos afortunada do que a menos afortunada que conhecemos.
Isto é, se tratarmos mal as pessoas com mais sorte do que nós, temos de estar dispostos a ser maltratados pelas pessoas que acham que tivemos mais sorte do que elas.
Faz-me lembrar um velho conselho do mundo do teatro: trata bem as pessoas que fores encontrando enquanto vais subindo na profissão, porque vais reencontrá-las todas quando começares a descer.
Não se fala disto porque fica mal recomendar que se trate bem os mais afortunados. A reacção natural, compensadora, equilibrante, é “os mais afortunados que se lixem!”.
Mas se a sorte e o azar são absolutamente uma questão de sorte e azar, faz tanto sentido tratar mal quem teve sorte, como tratar bem quem teve azar.
O melhor será aceitar o totoloto da vida e dizer, não só quando se vê um mendigo, mas também quando se vê um bilionário: “Aquele que ali vai, não fosse a graça de Deus, sou eu.
(Transcrito do PÚBLICO)