Maldição da reeleição dos políticos. Por que não abolir? (Juan Arias)
Em vez de fazer pactos com o demônio a fim de se reelegerem, os presidentes poderiam se interessar mais em resolver os problemas do país
atualizado
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O Brasil vive um dos momentos de maior convulsão política e social das últimas décadas. Para explicar esse fenômeno, as teorias se multiplicam. Mas há algo de que pouco se fala e talvez seja um dos principais motivos: a reeleição de políticos.
Tomemos o exemplo que temos diante de nossos olhos: o da presidência de Jair Bolsonaro. Antes de ser eleito, ele sabia que o assunto interessava à opinião pública, o que demonstrou pelo fato de que durante sua campanha eleitoral fez a seus possíveis eleitores a promessa de que “acabaria com a reeleição”. Tinha aprendido durante seus 30 anos como deputado federal que o tema é crucial nas crises políticas que o país sofreu.
Bolsonaro, que descumpriu praticamente todas as suas promessas eleitorais, passou a ter como principal preocupação, assim que foi eleito, garantir sua reeleição em 2022. A tal ponto que todos os crimes que cometeu durante a pandemia de covid-19 se devem a seu temor de não ser o escolhido nas urnas.
Toda a conduta criminosa que a CPI da Pandemia acaba de trazer à tona, e pela qual foi acusado de crime contra a humanidade, se deveu ao temor de que a covid-19 pudesse criar uma crise econômica que colocaria em xeque sua reeleição. Melhor, então, que morressem os que tivessem que morrer do que manter obrigatórias as restrições, inclusive a perda de empregos, para evitar o maior número possível de vítimas.
Todo o calvário da crise criada pelo capitão se relaciona hoje, incluindo suas ameaças de golpe de Estado, com o medo de não ser reeleito. Tudo seria diferente, no entanto, se ele tivesse cumprido sua promessa de acabar com a reeleição.
Se dermos uma olhada na situação política brasileira desde a redemocratização, perceberemos as crises provocadas pela lei de reeleição presidencial. É bem possível que se essa lei não tivesse sido aprovada, hoje, seria muito diferente, pois teria se livrado das muitas crises políticas que o empobrecem.
Se não houvesse a reeleição, tudo seria muito diferente. Em vez de fazer pactos com o demônio a fim de se reelegerem, os presidentes teriam se interessado mais em resolver os problemas mais graves do país e em trabalhar para deixar uma marca positiva em sua passagem pelo poder. Seria ainda mais fácil um dia voltarem ao cargo se sua imagem fosse lembrada como positiva.
Um presidente da República não pode ser um faraó egípcio ou um rei irremovível. Em quatro anos de Governo poderiam ser julgados pela opinião pública pela herança de bem-estar e segurança que deixaram.
Quatro anos é pouco? Não, é uma eternidade capaz de transformar um país.
Um presidente poderia ser capaz, em seu mandato de quatro anos, de fazer duas ou três reformas importantes, como a política. Hoje são mais de 30 partidos no Congresso, 90% deles sem ideologia. São máquinas para enriquecimento, algo que não existe em nenhum outro lugar do mundo. Poderia fazer a reforma tributária para que os mais ricos fossem os que pagassem mais impostos e assim houvesse mais dinheiro para resolver os graves problemas sociais. Poderia fazer, entre muitas coisas, a reforma da educação e saúde públicas para que fossem a inveja do setor privado.
Por que os políticos responsáveis pelas reformas geralmente enviam filhos e netos para escolas e hospitais privados, ao contrário do que acontece, por exemplo, na Europa, onde as universidades e hospitais públicos costumam ser melhores do que os privados? A melhor forma de um presidente retornar ao poder é deixando saudades de seu mandato se ele for capaz de aumentar o bem-estar e a felicidade dos cidadãos.
O caso, por exemplo, de Dilma Rousseff, a primeira presidente mulher da história do Brasil, teria sido muito diferente se ela tivesse presidido o país por apenas um mandato. Ao terminar, tinha 54% de aprovação, um dos mais altos, superando até o popular Lula. Se Dilma tivesse se aposentado ao final do primeiro mandato, em que foi aplaudida pela opinião pública, muita coisa teria mudado. Ela não teria passado pela humilhação do impeachment que acabou apagando sua vida política. Com certeza Lula teria voltado à presidência, não teria ido para a cadeia, e hoje o Brasil não sofreria a hecatombe criada por Bolsonaro, que nunca teria sido eleito.
Os analistas políticos deveriam estudar melhor o ressurgimento da extrema direita fascista até mesmo com nostalgias nazistas, não só no Brasil, mas em todo o mundo, a começar pelos EUA e Europa. Seria preciso pensar se pesa mais nesse contexto a deterioração da democracia e da política tradicional, transformada em balcão de negócios, acúmulo de privilégios e distanciada da opinião dos eleitores, o que a desacredita aos olhos da população.
O mundo necessita de uma reflexão profunda sobre o desprestígio e o cansaço geracional do conceito de democracia, que não sabe mais responder às demandas de um planeta em época de profunda transformação. Seria preciso consultar mais a nova geração de jovens que já vivem em outra dimensão cósmica e não se entusiasmam com os paradigmas de uma forma de fazer política que não sabe acompanhar a velocidade com que o mundo está evoluindo.
Uma das anomalias da política tradicional é, por exemplo, seu excesso de masculinidade em uma sociedade que está quebrando todos os paradigmas de gênero. Se o número de mulheres ultrapassa o de homens em todo o mundo, isso não se reflete na política, embora sua missão seja garantir o bem-estar da sociedade e não criar ideologia. Se alguém conhece, de fato, as reais necessidades das pessoas e toca com as mãos a crueldade da desigualdade, é a mulher, que está mais perto do flagelo e das angústias sociais e familiares.
Sim, não basta dizer que o mundo está cansado da democracia e pressiona para voltar aos tempos do absolutismo e da barbárie. Os democratas de coração que veem a política apenas como um serviço à sociedade e não como um seguro de vida para si e suas famílias precisam refletir e compreender que a democracia só será salva se a política for vista como um serviço prestado à sociedade em vez de um privilégio que, para ser mantido e perpetuado, levou à invenção do mecanismo perverso da reeleição.
Portanto, o melhor antídoto para a onda de fascismo que cresce no mundo é reconstruir a cansada democracia que, apesar de ser a melhor forma de convivência pacífica da humanidade, é hoje acossada por tentações autoritárias que causam morte, injustiça e fome no mundo.
O fundador e primeiro editor deste jornal, Juan Luis Cebrián, agora membro da Real Academia Espanhola, acaba de escrever: “Estamos em um mundo conturbado, sujeito a grandes transformações. Se quiserem ser úteis à comunidade, os governantes ou aqueles que desejam chegar ao poder precisam ouvir mais e pregar menos, e se reunir com seus eleitores. Afinal, é a eles e não à nomenklatura que devem a honra e a glória. Mas são também os eleitores que detêm o direito de expulsá-los do templo”.
Hoje, no Brasil, diante da tragédia do Governo golpista do capitão Bolsonaro, dado o conluio entre as diferentes instituições estatais que se alimentam e se defendem, quem tem que reconquistar o direito de expulsá-lo do templo da política é quem estão sofrendo os efeitos maléficos de sua incapacidade de liderar o país, antes que seja tarde demais.
Depois de ficarem expostas as veias abertas da ignomínia criada pelo presidente com a pandemia, as ruas e praças do Brasil precisam urgentemente ressoar de novo sob o grito de “Fora com o Bolsonaro!” para que se possa recuperar a paz e a esperança perdidas.
(Transcrito do jornal El País)