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Lições de um prefeito escritor (por Gustavo Krause)

O Brasil segue um calendário eleitoral que, a cada dois anos, intercala eleições gerais e eleições municipais

atualizado

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Elza Fiúza/Agência Brasil
Panfletos e santinhos em eleição
1 de 1 Panfletos e santinhos em eleição - Foto: Elza Fiúza/Agência Brasil

O ambiente político fervilha nos anos de eleição. Apesar das imperfeições e disfuncionalidades do regime, o Brasil segue um calendário eleitoral que, a cada dois anos, intercala eleições gerais e eleições municipais.

A democracia tem uma virtude indiscutível: confere mandato com prazo determinado, assegurando alternâncias, exceto o faz-de-conta das nações que ameaçam constantemente os mecanismos da democracia liberal e ampliam globalmente os espaços do populismo autocrático.

Por aqui, há os que preconizam reformas que corrijam as distorções do nosso sistema político. Esqueçam. Diz o cancioneiro: “Meu amigo, se ajeite comigo e dê graças a Deus”. Vamos ao jogo. As regras estão estabelecidas e a vida real de 5.570 municípios será exposta com suas carências e dificuldades num quadro de brutal desigualdade.

Neste clima, milhares de candidatos vão às ruas, com o sem a falsificação do marketing, pedir e se mostrar merecedor do voto do eleitor.

A vida local da menor e mais pobre à mais rica e populosa cidade é o espaço das transformações reais, a desafiar a capacidade de gestores e legisladores. O julgamento popular será um passo adiante ou, para trás, dos projetos políticos/pessoais.

Sem dúvida, o mais complexo dos desafios está reservado para a governança, hoje elevada à categoria estratégica ao lado das questões sociais e ambientais. Ganhou lugar de destaque na composição da sigla internacional ESG.

Trata-se de conceito e experiência extremamente complexas. Exigem múltiplas capacidades, conhecimentos, estratégias e métodos. O importante: é possível aprender a fazer e melhorar a qualidade de vida dos cidadãos. No entanto, para além dos mecanismos modernos e inovadores, a gestão deve obrigatoriamente observar princípios que atravessam o tempo.

Neste ponto, recordo a passagem memorável da gestão municipal no Brasil do Prefeito Escritor (e admiravelmente transgressor) Graciliano Ramos (1892-1953), grande romancista e expoente da geração modernista de 30 que nos deixou 11 obras em vida, 10, póstumas e duas traduções, uma delas, A peste, de Camus.

Como Prefeito de Palmeira dos Índios (candidato único por consenso e 433 votos) imortalizou dois relatórios dirigidos ao Governador de Alagoas em 1929 (exercício do 28) e 1930 (exercício de 1929), recém-editados pela Record sob o título O prefeito escritor: dois retratos de uma administração, prefaciado pelo Presidente Lula. Neles, estavam as sementes do moderno conceito de accountability (prestação de contas e responsabilização).

Os relatórios revelam o escritor/transgressor, primeiro ao usar os verbos na primeira pessoa do singular com estilo conciso, sem enfeites, imitando, segundo ele, o ofício das lavadeiras que se dedicavam ao esforço repetido do fazer prosaico de, com esmero, lavar o tecido. A partir do exemplo, dizia: “Quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como falso: foi feita para dizer”. A vocação de escritor derrotou o jargão burocrático.

Sempre iniciava os documentos prestando contas, minuciosamente, das receitas e gastos. “Consegui salvar em setenta dias 9:539$447 (Moeda da época, comparação 1 Real/100 Réis). É pouco. Entretanto fiz esforço imenso para acumular soma tão magra […] suprimi despesas e descontentei bons amigos e compadres que me fizeram pedidos […] de resto preciso efetuar uma economia considerável, não só para custear as despesas como para fazer face à dívida que a administração passada me legou”.

Apesar de tempos históricos distintos, no relatório, estão demonstrados sinais de austeridade, transparência, probidade, zelo com o dinheiro público (responsabilidade fiscal) e, nas entranhas da gestão pública, constatados os vícios do compadrio e do patrimonialismo.

Outro expressivo registro com realismo, humor e ironia: “A cobrança das contas atrasadas é impossível […] Isto se explica pelo fato de sermos todos, prefeitos, conselheiros, contribuintes, mais ou menos, compadres”.

Nascido em Quebrangulo (AL) e primogênito de uma numerosa família de 16 irmãos, o notável escritor escreveu seu primeiro conto, O pequeno pedinte, em 1904. A partir de então, a extensa bibliografia se inspirou na sua profunda sensibilidade para denunciar os contrastes sociais, expostos na miséria dos retirantes nordestinos donde emergia o infortúnio dos desvalidos a exemplo de Fabiano, protagonista de Vidas Secas.

O romance engajado e suas ideias renderam-lhe uma prisão em 1936, sob a acusação de ser comunista por quase um ano. Inocentado. As agruras do prisioneiro foi o tema do romance autobiográfico Memórias do Cárcere. Em 1945, filiou-se ao PCB.

Com modéstia, disse em um dos relatórios: “Não pretendo levar ao público a ideia de que meus empreendimentos tenham vulto. Sei perfeitamente que são miuçalhas”, mas com a firmeza de convicções das quais jamais se afastou, assim se referiu ao “pobre povo sofredor” que “quer escolas, quer luz, quer estrada, quer higiene”.

O exemplo e o sonho do prefeito escritor, alargados, atualizados, realizados, bem que podem servir como plataforma e compromisso dos candidatos que almejem um espaço de poder nas próximas eleições municipais.

Em quaisquer circunstâncias, fica a lição atemporal: o bom governo é o mais forte argumento em favor do prestígio e da resistência da democracia.

 

 Gustavo Krause foi ministro da Fazenda 

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