Lembranças e raízes (por Gustavo Krause)
O valor das raízes reafirma o sentimento da pertença sem afetar a dimensão do universal
atualizado
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O passado sempre me assustou. Não pelo conjunto de vivências ou experiências, mas pelo vazio das ausências. Consciente da transitoriedade da existência, o desejo inconsciente da imortalidade é absolutamente inútil. E tudo passa. O realismo se impõe, mas que dói, dói. E quando me refiro ao vazio, à falta, não me limito às pessoas. Estendo um esforçado olhar para tudo que um dia foi paisagem natural ou dinâmica cultural que preencheu a vida
Todo dia 10 de dezembro, almoçava com velhos amigos na casa de Leonardo Silva, em comemoração ao aniversário do consagrado pesquisador e historiador pernambucano com quem convivi, desde os 11 anos de idade no bairro da Torre, e trabalhamos juntos em funções públicas. Com ele aprendi muito e a inteligência pernambucana foi engrandecida por sua competência e integral dedicação ao nosso rico e diversificado patrimônio cultural.
Seria um dia particularmente triste: exatos trinta dias do seu falecimento. A família, por desejo de Leonardo, manteve o almoço. O encontro, pouco convencional, ocorreu com a leveza e a beleza da vida nos dando a sensação de que ele orquestrava uma sinfonia de afetos. Brindamos a alegria e a aventurança de tão longa e indestrutível amizade.
Em mim, operou-se uma transformação. Como diria Nelson Rodrigues, tornei-me um ex-covarde. Desde morte de minha mãe, em fevereiro de 1985, não voltei à rua e às cercanias da casa onde morei, Bairro da Torre, como se pudesse apagar maravilhosas lembranças e as dores da saudade. Naquele dia, a coragem esbofeteou o sentimento mofino da fuga; abriu olhos interditados; iluminou a memória e confirmou o valor das raízes.
Fui a todos os lugares, completamente desfigurados pelo acelerado e desordenado processo de urbanização, mantidos intactos por força do processo de tombamento e iniciativa de Leonardo, a fachada da Matriz de Nossa Senhora do Rosário, a chaminé do primitivo engenho (depois olaria) a casa grande transformada no grupo escolar, hoje, denominada Escola Maciel Pinheiro aos quais prestei minha reverência.
Do romântico banco da praça (Barreto Campelo), compreendi o sentido do tempo da memória (título do belo livro de Norberto Bobbio – Ed. Campus, Rj, 1997) que não corre atrás de lembranças, mas olha para dentro de si mesmo, onde, dizia Santo Agostinho, habita a verdade.
Estas verdades são as raízes. E as raízes me chegaram nos três apitos (título de uma canção de Noel Rosa) que ecoavam do Cotonifício da Torre, às 14, 22 e às 6 horas da manhã determinando o fim e o começo das jornadas de trabalho; depois, veio a voz do locutor da festa de Santa Luzia (padroeira da visão e objeto da devoção pela proteção de acidentes que afetavam os olhos dos operários), voz sempre empostada, animando os frequentadores com músicas românticas e enviando mensagens cifradas de paqueras com um “assinado: pensando saberás”. Mais ao longe, a imagem do Rio Capibaribe marejou meus olhos.
O minúsculo fato provinciano reacendeu lembranças e revelou o valor das raízes, que só é possível no lugar de origem; no lugar pequeno em que se pode amar o próximo; e que os homens são mais iguais do que diferentes; que os sentimentos de mãe não conhecem fronteiras nem qualquer outra distinção.
Daí, uma das frases mais citadas de Tolstoi (1828-1910, escritor genial e um educador libertário): “Se queres ser universal começa por pintar a sua aldeia”; o cosmopolita e grande estadista, Joaquim Nabuco(1849-1910) definia seu sentimento político e afetivo de pertença em relação às suas raízes: “A verdade é que sinto cada vez mais forte o arrocho do berço”.
Neste sentido, duas das maiores filósofas do século XX, Simone Weil (1909-1943) ; e Hannah Arendt (1906-1975) nos legaram sólidas reflexões sobre a questão do enraizamento e do desenraizamento (este é o título de uma das obras admiráveis de Weil) enquanto que Arendt, ao discorrer sobre a banalidade do mal, identifica o mesmo fenômeno da experiência humana desenraizada em relação à amoralidade, à subserviência às ordens e ao acriticismo.
Todos os amigos homenageavam o homem da cultura na sua mais ampla expressão que compreendeu que as raízes são uma necessidade da alma e sua negação uma grave doença social.
Do banco da praça, rapidamente, fui inundado pelo pavor do ódio, da violência, da estupidez das guerras que naquele instante assassinavam pessoas e condenavam ao desaparecimento a casa, a vizinhança, a cultura, a terra, enfim, as raízes. Daí, brotam multidões de zumbis, sem passado e sem futuro.
Por mais ingênuo que possa parecer, sigo acreditando que é possível repartir mais igualitariamente o que o engenho humano produz, semear esperança, celebrar a paz e construir um mundo melhor para se viver.
Gustavo Krause foi ministro da Fazenda