Israel nega genocídio em Gaza, mas e o domicídio? (Por Ana Margarida)
A destruição em Gaza voltou a despertar a discussão à volta do domicídio, apesar de este termo não ser reconhecido aos olhos da lei
atualizado
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O Governo israelita está a lutar contra as acusações de genocídio apresentadas pela África do Sul no Tribunal Internacional de Justiça, em Haia. Enquanto nega estes atos, também surgem cada vez mais denúncias a dar conta da destruição em Gaza, provocada pela guerra entre Israel e o Hamas, e a rotular estas ações como domicídio (domicide, em inglês). “O domicídio tem sido, de facto, implacável”, afirma o relator especial das Nações Unidas sobre o direito à habitação, Balakrishnan Rajagopal. Em janeiro, “mais de 70% das habitações de Gaza e cerca de 82% das habitações do Norte de Gaza foram destruídas. E os bombardeamentos continuam a ocorrer”.
Desde o início do conflito, quase dois milhões de pessoas tiveram de deixar as suas casas. Uma investigação do jornal The Guardian refere inclusive que, na Faixa de Gaza, foram destruídos mais de 250 edifícios residenciais, 16 mesquitas, 17 escolas, três cemitérios e três hospitais e ainda 150 estufas. Balakrishnan Rajagopal adiciona a esta lista escolas, bibliotecas, universidades, museus, tesouros culturais e a paisagem que envolve a cidade.
Para o relator das Nações Unidas, os danos não se resumem apenas à destruição física dos edifícios. Por escrito, ao PÚBLICO, explicou que “a destruição sistemática ou generalizada do direito a uma habitação adequada”, ou seja, o domicídio, estende-se às esperanças, às memórias, aos sonhos futuros, à dignidade, ao orgulho e às poupanças dos cidadãos — a “tudo aquilo que nos define como humanos”.
Balakrishnan Rajagopal vai mais longe e diz que Israel está a destruir não só as vidas dos palestinianos e as suas habitações, mas também a identidade coletiva de um povo e a tornar Gaza inabitável. “Israel está a violar a própria essência do que significa ser humano.”
E, se por um lado, estes casos parecem acontecimentos que afetam exclusivamente a zona em que ocorrem, Balakrishnan Rajagopal refere que não. “O domicídio prejudica sociedades inteiras, porque é um dano coletivo e não apenas individual. Não é só moralmente errado, como também é socialmente destrutivo, economicamente catastrófico e politicamente perigoso, quando vemos sociedades e comunidades inteiras a serem destruídas”, nota. “Todas as pessoas com algum sentido de decência e autoconsciência e como seres humanos deveriam preocupar-se”, acrescenta.
A habitação é um direito consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos. É por isto que, segundo Balakrishnan Rajagopal, as casas, enquanto objectos protegidos ao abrigo do direito humanitário, não podem ser destruídas em combate, a não ser que haja uma necessidade militar.
No entanto, quando falamos de “bairros inteiros a serem destruídos e a destruição maciça de habitações”, não podemos falar de “um crime por si só”. Portanto, para o relator da ONU, existe “uma lacuna no direito internacional que precisa de ser preenchida”.
Apesar de este termo não ser reconhecido aos olhos da lei, alguns especialistas como Balakrishnan Rajagopal defendem que o domicídio deveria efetivamente ser considerado um crime internacional. Isto seria através de uma alteração ao Estatuto de Roma – um tratado internacional assinado por 123 países que criou o Tribunal Penal Internacional (TPI), instituição que tem “jurisdição sobre as pessoas responsáveis pelos crimes de maior gravidade com alcance internacional” e que julga crimes como o de genocídio, de guerra, de agressão e contra a humanidade.
“Há precedentes para tais alterações — a fome foi introduzida como crime em 2019”, aponta Balakrishnan Rajagopal. “Qualquer país que seja signatário do Estatuto de Roma pode introduzir uma alteração deste tipo”, diz. Se isto não acontecer, um tribunal pode considerar a destruição maciça de habitações um crime, mas isso depende da interpretação jurídica.
Apesar de Israel não ser um país signatário do tratado internacional, pode ser investigado por crimes contra o Estado da Palestina, já que este último território ratificou o Estatuto de Roma em 2015. Tendo em conta a inação dos países, Balakrishnan Rajagopal diz ser necessário questionarmos “se os direitos humanos são ou não universais e se todas as vidas têm a mesma importância”.
(Transcrito do PÚBLICO)