Holocausto da alma (por Cristovam Buarque)
Netanyahu comete um holocausto da alma do povo judeu, ao destitui-lo de sua milenar moral humanista
atualizado
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O povo judeu forneceu muitos dos mais importantes pensadores que formam a alma da civilização contemporânea espalhada por todo o planeta. Esta supremacia moral foi ampliada pela memória do cativeiro sob faraós egípcios, da diáspora provocada pelos romanos, dos guetos na Europa durante impérios cristãos e do holocausto nazista no século 20, contra a vida de seis milhões de judeus. Cometido pelo ódio antissemita e o oportunismo político de Hitler para mobilizar a opinião pública alemã, na busca de vingança à derrota na Primeira Guerra Mundial que ele inculpava aos judeus, e para conquistar o que ele chamava “espaço vital” para a nação alemã.
A criação de Israel aumentou a força moral do povo judeu. Mesmo com as críticas à expulsão dos habitantes palestinos, o mundo ocidental apoiou a construção de um porto seguro para os judeus, sob liderança de estadistas progressistas, em uma sociedade democrática, igualitária e libertária, apoiada na educação, na ciência e tecnologia.
Décadas depois, com oportunismo político para se manter no poder atendendo ao justo desejo social de vingança por causa da brutalidade do assassinato e sequestro de mais de mil israelenses por terroristas do Hamas, também com a intenção de ampliar o “espaço vital” de Israel, Netanyahu comete um holocausto da alma do povo judeu, ao destitui-lo de sua milenar moral humanista, desnudada pela destruição, pelo assassinato em massa, imposição de diáspora, ocupação de território, usando para isto o poder descomunal de seu exército.
A força moral do sionismo está sendo incinerada pelas imagens dos tanques e aviões de Israel bombardeando Gaza como se fosse Lídice ou Horoshima, implantando guetos como se fosse Varsóvia, assassinando civis, mulheres e crianças, como se estivessem em campos de concentração, abrindo covas coletivas como fez o exército alemão. Os crimes sobre Gaza pesarão por décadas como um holocausto da alma de Israel e do povo judaico que aceita identificar-se com estes crimes. O nome judeu, moralmente vinculado a Jesus, Espinoza, Marx, Freud, Einstein, Arendt, Morin e outros símbolos do humanismo, hoje é vinculado a Netanyahu, símbolo de ódio, destruição, arrogância, racismo e oportunismo; tanto quanto o nome do povo alemão ficou identificado por décadas a Hitler, no lugar de Kant, Goethe, Hegel, Beethoven. Ao usar a justa ira do povo de Israel como justificativa para cometer genocídio contra o povo palestino, Netanyahu comete um holocausto contra a moral dos treze milhões de judeus, cinco dos quais israelenses. Comete um hocausto contra a alma judaica.
Ainda que alguns protestem contra a incompetência para libertar os reféns, tanto quanto alguns alemães se opuseram a Hitler, mas sem denunciar o genocídio cometido em seu nome, a moral judaica é sacrificada.
Mas, da mesma maneira que não se devia confundir alemães com Hitler, é preciso que a indignação com o que hoje acontece em Gaza não se transforme em antissemitismo. Mesmo lamentando o apoio quase universal dos judeus do mundo à maneira como a guerra é conduzida, os humanistas têm uma dívida com o pensamento e têm solidariedade com o sofrimento judaico, por isto devem diferenciar o permanente povo judeu do provisório governo atual de Israel. Depois de Gaza está difícil ser humanista e sionista, mas o humanismo é incompatível com antissionismo. O povo judeu é maior do que Netanyahu e seu governo, maior do que Israel, por isto, os humanistas têm obrigação de denunciar os crimes de sequestros e assassinatos cometidos pelo terrorismo do Hamas, e os crimes de guerra de Israel, mas também lembrar a dívida do humanismo com os judeus, manifestar solidariedade com as vítimas do holocausto físico por nazistas no século 20 e com as vítimas do atual holocausto moral contra a alma do povo judeu cometido pelo governo de Israel. Sem transigir com os crimes do atual governo de Israel, os humanistas devem combater toda forma de antissemitismo.
Todos humanistas de hoje, inclusive judeus, devem se manifestar contra os crimes cometidos em Gaza e Cisjordânia, e contra o holocausto da alma judaica cometido pelos atuais dirigentes de Israel.
Cristovam Buarque foi senador, governador e ministro