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Haddad, primeiro passo de esquerda lúcida (por Cristovam Buarque)

Parte dos militantes da esquerda sofre esta ilusão nostálgica: vê a sociedade atual como ela era antes, sem entender que ela mudou

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Imagem colorida de Fernando Haddad, ministro da Fazenda que teve inquérito arquivado pela Justiça; ele é um homem branco, de cabelos grisalhos falando a um microfone - Metrópoles
1 de 1 Imagem colorida de Fernando Haddad, ministro da Fazenda que teve inquérito arquivado pela Justiça; ele é um homem branco, de cabelos grisalhos falando a um microfone - Metrópoles - Foto: Vinícius Schmidt/Metrópoles

Às vezes uma pessoa perde a lucidez por ilusão interna, psiquiátrica ou neurológica, que a impedem entender a realidade. Em 1985, o neurologista Oliver Sachs conta em seu livro O homem que confundiu sua mulher com um chapéu que um paciente, no lugar de falar com a esposa em frente, pensou levantá-la para colocar sobre a cabeça. Na política existe uma outra ilusão, nostálgica: quando a realidade se transforma, mas o militante continua entendendo-a em sua forma anterior; sem perceber a marcha da história, continua pensando com base na mesma realidade e nos mesmos sonhos vindos do passado. Parafraseando Sachs, seria o caso de a mulher ter se transformado de fato em chapéu e o marido sem lucidez continuar conversando com ela.

Parte dos militantes da esquerda sofre esta ilusão nostálgica: vê a sociedade atual como ela era antes, sem entender que ela mudou. Não percebem, por exemplo, que no mundo atual não há mais possibilidade das políticas econômicas nacionais ignorarem a interação global dos tempos atuais. Antes o mundo era formado pela soma de países independentes, hoje cada país é um pedaço do mundo. As fronteiras nacionais já não correspondem às fronteiras econômicas.

Tampouco percebem o esgotamento do Estado para financiar as despesas, tanto os gastos quanto os investimentos. Por isto, no lugar de ajustar os gastos à realidade, e definir a quem sacrificar e quem beneficiar, preferem o comodismo de dizer que não há necessidade de Teto para as despesas do Estado. Para justificar esta recusa à realidade, modificam a linguagem que a define, manipulam terminologia para ajustar realidade atual à passada. Chamam gasto pelo nome de investimento, ignorando ou escondendo que ambas são despesas. Quando geram retorno, são investimentos, quando não, são gastos, mas, no momento em que são realizados, gastos ou investimentos exigem desembolso, são despesas. O gasto só se transforma em investimento se todas as condições previstas para sua execução e operação derem certo. As 9.000 obras paradas seriam investimentos se tivessem sido concluídas e operacionalizadas, paradas são gastos que penalizaram as finanças. As despesas com a construção de uma casa ou com o funcionamento de escolas são investimentos quando seus resultados chegarem, até lá, são gastos. Mesmo que tenha finalidade social, como salvar vidas ou educar crianças, o investimento exige desembolso de recursos. Para financiá-los, enquanto seus retornos não ocorrem na realidade atual, as forças progressistas devem reduzir desperdícios, privilégios, taxar os ricos, sem ignorar a realidade que levou o Estado ao esgotamento.

Caso contrário, voltarão a provocar inflação, recessão, desemprego, pobreza, como produto da insensatez nostálgica. A falta de lucidez impede perceber que a confiança dos agentes econômicos na estabilidade monetária é um fator de produção. Não entendem, por isto, que a prática responsável do Déficit Zero pode gerar mais recursos do que os gastos que o Estado faça usando déficits. De certa forma, o Déficit Zero gera receita ao promover a confiança que promove dinamismo econômico. Além de evitar o gasto invisível representado pela perda de valor da moeda devido à inflação, que vem dos déficits fiscais. Mas isto não é visível para o observador viciado no conservadorismo que impede ver as mudanças que ocorreram na realidade, levando a decisões com base em foto mental do passado. Que levam também ao conservadorismo de sonhos em utopias que já morreram.

Felizmente, os eleitores tiveram a lucidez de eleger Lula em 2022, e, em 2024, ele tem o Haddad, além de Alckmin e Tebet, com percepção da economia como ela é nestes tempos, não mais como ela foi em passado recente. Falta agora perceber que a diferença entre esquerda e direita não está mais na economia, mas diretamente na estrutura social e na relação com a natureza. A esquerda precisa olhar para o presente com suas características e limitações reais, e se diferenciar da direita com sonhos novos para o futuro. Definir bandeiras tais como a garantia de educação de base com a máxima qualidade para todos, os filhos dos pobres e dos ricos nas mesmas escolas de um sistema nacional único público, para todos. Entender que, hoje, o Capital está no Conhecimento que se amplia e se faz justo se for distribuído nos bancos de escola, aproveitando todos os cérebros do país. Haddad é o primeiro passo da sensatez da esquerda para lidar com a realidade econômica, falta os partidos de esquerda apresentarem os sonhos utópicos com lucidez progressista, no lugar da insensatez nostálgica.

 

Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador

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