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Gratas por ter uma bola (Por Mariana Cabral)

Lute pelas coisas de que você gosta, mas faça isso de uma maneira que leve outras pessoas a se juntarem a você

atualizado

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Gabriel Aponte/Getty Images
Seleção Brasileira feminina
1 de 1 Seleção Brasileira feminina - Foto: Gabriel Aponte/Getty Images

Uma das poucas emoções toleradas – talvez até incentivada – numa mulher que viva numa sociedade predominantemente patriarcal é a gratidão. Uma mulher deve estar grata por poder trabalhar, grata por poder votar, grata por não ser assediada se sair de casa de mini saia, enfim, grata por existir.

Não é, por isso, surpreendente que a maioria dos discursos a rodear o crescimento do futebol feminino se revistam de encómios a parcas medidas pelas quais devemos estar gratas. Afinal de contas, no meu tempo de jogadora, já lá vai uma década que parece, entretanto, ser um século, ninguém vivia do futebol. Jogar num estádio com relva em vez de borracha era uma miragem (às vezes ainda é), esperar mais do que um aperto de mão depois de uma conquista era fantasioso e o interesse mediático por atletas do sexo feminino limitava-se às últimas páginas dos jornais ditos desportivos, com figuras desnudas e trocadilhos brejeiros que tinham tanto de desporto como as páginas anteriores tinham de literatura.

Eis-nos chegadas, hélas, a uma encruzilhada. Sim, a gratidão é uma qualidade de quem vive com a consciência de que já teve bem menos do que tem hoje, mas não pode deixar de fazer com que a exigência de querer mais desapareça entre os pingos de uma chuva miudinha que, mesmo sendo chuva, não molha assim tanto.

Se a selecção dos EUA tem sido a grande potência mundial do futebol no feminino (já lá vão quatro Campeonatos do Mundo conquistados) em muito se deve a uma geração de jogadoras – Megan Rapinoe, que disputará o seu último Mundial, à cabeça – mais corajosa do que grata, que conseguiu elevar o patamar de base das suas condições de trabalho para equipará-las às dos homens.

Quando se fala nas duas palavras mais temidas por qualquer dirigente por essas federações fora – “equal pay” – não se fala (apenas) de dinheiro. Essa até será, quiçá, a última das ambições de quem joga no feminino, ainda que várias das federações já tenham equiparado os pagamentos a atletas que representam as selecções masculinas e femininas: EUA, Inglaterra, Brasil, Austrália, Noruega, Gales… Mas, antes disso, são necessários outros predicados: elas treinam em relvados ou sintéticos? Sempre ou uma vez por mês? A que horas? Têm material de treino? Profissionais qualificados à sua volta? Ginásio? Balneários? Como viajam? Têm sequer equipamentos suficientes?

É neste limbo entre o deve e o haver que o futebol feminino cresce actualmente. Também as campeãs europeias, Inglaterra, onde o feminino mais tem crescido nos últimos anos, lançaram antes da prova um comunicado queixando-se da própria federação, com quem não chegaram a acordo em relação ao pagamento de prémios (curioso como quem mais se impõe também mais parece ter sucesso…).

A 7 de Julho de 2019, sentada no Estádio do Lyon, um dos momentos mais bonitos a que assisti no futebol (além daquele remate de Éder no Stade de France), foi a vitória dos EUA. A festa no estádio foi coroada com cânticos tão fortes que parecíamos todos, naquele dia, ser americanos. Mas o patriotismo dos quase 60 mil adeptos presentes era enganador: a sonoridade das palavras cantadas por todos era, de facto, semelhante a “USA”, mas um ouvido mais atento discernia que aqueles gritos, eram, afinal, “equal pay”.

A luta foi reconhecida como justa porque elas, além de atletas, são exemplos de coragem para uma sociedade em que as mulheres nem sempre podem demonstrar mais do que gratidão. E encarnam na perfeição o equilíbrio periclitante de uma das frases mais bonitas de Ruth Bader Ginsburg, antiga juíza do Supremo Tribunal dos EUA: “Lute pelas coisas de que você gosta, mas faça isso de uma maneira que leve outras pessoas a se juntarem a você”. Vamos juntar-nos?

(Transcrito do PÚBLICO)

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