Governos contra a política (por Roberto Brant)
Escolher um presidente cujo propósito é lutar contra o Judiciário, os partidos e os políticos é, na verdade, ir em busca de um desgoverno
atualizado
Compartilhar notícia
A política brasileira sempre teve suas extravagâncias e nenhuma delas levou a um bom desfecho. Sempre que a ordem normal das coisas prevaleceu, os resultados foram melhores.
Para as pessoas da minha geração, a primeira anormalidade ocorreu quando a UDN, partido das elites e dos bacharéis, cansada de perder eleições, tomou emprestado um aventureiro de um partido desconhecido, para disputar a eleição em seu nome.
O personagem era Jânio Quadros, que ganhou a eleição com um discurso moralista e demagógico. Sem conseguir verdadeiramente governar, renunciou seis meses depois, precipitando o país num abismo por 24 anos.
Na primeira eleição presidencial da redemocratização, uma nova aventura, chamada Collor, ofereceu-se aos eleitores sem memória, parodiando o discurso moralista de 1960 e prometendo combater os “marajás”, entidade indefinida, feita na medida para satisfazer a todas as formas de ressentimento.
O modelo foi semelhante. Uma novidade, vinda de um partido inventado para a ocasião, chegava para acabar com a política, mesmo que a política naquela hora fosse Ulysses Guimarães, Mário Covas, Aureliano Chaves, Brizola e até o Lula. Ganhou a eleição, mas fez um governo caótico e tumultuado, que terminou com um impeachment e o país desorganizado e em frangalhos.
Volto a esses episódios quase esquecidos para lembrar que a democracia está sempre sujeita a essas extravagâncias e que elas podem voltar a ocorrer. Os juízos políticos nas democracias de massa são quase sempre fundados em emoções de superfície e raramente na razão.
Para conciliar a vontade popular com as exigências de governar sociedades complexas e cada vez mais diversas e informadas – ou mal-informadas –, é necessária a mediação das instituições políticas, em especial o Parlamento e os partidos políticos. Não há caminho alternativo.
Vivemos tempos semelhantes, com a política correndo fora dos trilhos. O atual presidente se elegeu fora dos partidos e com um discurso contra a política. Eleito, descobriu que, em nosso sistema constitucional, governos sem maioria própria no Congresso podem pouca coisa a não ser falar de seus planos e reclamar da falta de poder.
Governar apenas com discurso não é suficiente. Afinal, as pessoas têm problemas reais e esperam que o governo os resolva. Em busca de salvar o governo ainda a tempo, o presidente buscou apoio onde era possível. Acabou deixando seu partido e se associando aos políticos do Centrão, último refúgio de todos os governos em crise, a quem tanto havia criticado nos discursos de campanha.
Os temas da eleição foram arquivados, mas uma parte das pessoas sempre perdoa essas coisas.
Até aí, temos uma história que não é propriamente original. O inusitado é que nosso presidente, pela primeira vez na história, não está mais filiado a qualquer partido e anda à procura de uma legenda para disputar a reeleição e, se vencer, continuar governando do mesmo modo, sem sustentação organizada no Congresso e sem nenhuma ambição de reformar a vida do país. A ideia parece ser apenas estar no poder, mesmo que para nada.
Nosso sistema constitucional funciona dentro de certas regras, que são universais na democracia. Os Poderes são separados e independentes. O Legislativo funciona com base na vontade popular, representada pelos partidos políticos. Escolher um presidente cujo propósito é lutar contra o Judiciário, os partidos e os políticos é, na verdade, ir em busca de um desgoverno, não de um governo.
Ou então é sonhar para que o presidente consiga destruir ou dominar os outros Poderes. Nesse caso, estaremos simplesmente escolhendo a ditadura pelo voto, como estamos vendo em muitas partes do mundo.
As previsões da meteorologia política são inquietantes. Nas eleições, podemos ter candidato contra a política, no governo e até na oposição. Que ninguém se iluda: votar contra a política é votar contra a vida democrática. Que cada um tenha isso claro na consciência, no primeiro domingo de outubro de 2022. O preço pode ser muito alto.
Roberto Brant escreve no Capital Político. Ele foi deputado federal constituinte por Minas Gerais, secretário de Fazenda no governo Hélio Garcia em Minas, ministro da Previdência e Assistência Social do governo de Fernando Henrique Cardoso. Preside atualmente o Instituto CNA. Escreve nos jornais Correio Braziliense e Estado de Minas.