“Governar é abrir estradas” (por Mary Zaidan)
Ao pregar a gastança, Lula recicla slogan de 100 anos atrás
atualizado
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O presidente Lula tem sido duramente criticado por governar com olhos no retrovisor, não raro com o fígado. Por não ter novos projetos e insistir na repetição até do que não deu certo. Não é bem verdade. Lula parece querer alcançar um passado ainda mais distante. Na sexta-feira, pregou sem papas na língua que governar é gastar – “dinheiro bom é dinheiro transformado em obras, em estradas, em escolas…em saúde” -, reciclando, apenas com um pequeno retoque, a máxima de Washington Luiz, que presidiu o país de 1926 a 1930, também usada por Juscelino Kubitschek nos anos 1960: governar é abrir estradas.
Mesmo que as estradas de Lula não se limitem às vias de transporte, incluindo escolas e saúde, o conceito de que governar é tocar obras e gastar além do estoque de dinheiro do cofre é um retrocesso gigantesco. Espera-se do Estado que ele estimule o desenvolvimento com políticas públicas estruturadas e responsabilidade, previsibilidade e até alguma inteligência, posturas que passam longe do gastar sem limites.
Ainda que cometa gafes horrendas, Lula não costuma agir contra si. Antes de tudo, tem senso eleitoral aguçado. Há uma semana, quando convidou jornalistas para um café da manhã no dia de seu aniversário, ele jogou no lixo a meta fiscal zero para 2024, tão zelosamente defendida por seu ministro da Fazenda, Fernando Haddad.
A reação quase unânime, até entre alguns aliados, foi a de que Lula deu um tiro no pé. Será? Talvez quisesse desviar as atenções da aceleração da queda de sua popularidade, registrada em pesquisas públicas e internas, e retomar as rédeas do mando político que estão nas mãos do Congresso. Mais especificamente com o presidente da Câmara, Arthur Lira.
Nas contas de Lula, admitir um déficit entre 0,25% ou 0,5%, que já estava precificado pela totalidade dos analistas, iria desagradar o mercado – aquele ente genérico e ganancioso, sempre usado pelo petista para retratar o mal -, que rapidamente se recuperaria das perdas do dia da fatídica declaração. Sabotaria publicamente Haddad, nada que ele não conseguisse contornar com o coração. Mas a contrapartida valia a pena: animaria os políticos – PT e companhia, o voraz Centrão. Na sexta-feira, na reunião com os ministros da área de infraestrutura, clareou o recado para não deixar dúvidas: “Se o dinheiro tiver (sic) circulando e gerando emprego, é tudo que um político quer e que um presidente deseja”.
Para boa parte do Congresso pouco importa se o país terá ou não equilíbrio fiscal. O que os parlamentares querem é que suas emendas não entrem no inevitável contingenciamento frente à exigência de déficit zero para o próximo ano. Lula acenou para eles e trouxe a bola para o seu campo: caberá ao presidente definir se, quando e com qual percentual fará mudanças na previsão de déficit.
Depois de lançar a bomba e pôr meio mundo em polvorosa, Lula matreiramente escapou desse papo de déficit, tema ininteligível para maior parte das pessoas, estimulando a gastança: obras, execução do PAC 3, planos para 2024, coisas que podem dar fôlego à sua popularidade. Tirou fotos sorridentes com o ministro Haddad, destroçado por ele uma semana antes, e delegou ao ministro da Casa Civil, Rui Costa, a função de porta-voz da reunião.
Tido como defensor da política suicida “gasto é vida” perpetrada por Dilma Rousseff, e portanto opositor interno de Haddad, Costa até tentou driblar o óbvio ao afirmar que não há previsão de aumento de gastos, que estariam limitados pelo novo arcabouço fiscal, aprovado neste ano. Uma meia verdade que não resiste à revisão da Lei de Diretrizes Orçamentárias, já enviada ao Congresso, e que terá de ser alterada para embutir qualquer previsão de déficit acima de zero. Negou ainda divergências palacianas com a turma da Fazenda.
Para o presidente que em 2023 crê que governar é tocar obras, cabe lembrar que a gastança de Juscelino em grandes obras inaugurou a escalada inflacionária brasileira, só debelada pelo Real de Fernando Henrique Cardoso. E que no primeiro ano de governo de Washington Luiz o ministro da Fazenda era um tal de Getúlio Vargas, que, à época, preferia regras fiscais rígidas e contenção de gastos.
A história não se repete nem o relógio anda para trás. Há menos de duas décadas, a popularidade de Lula bateu acima dos 80%. O Brasil e o mundo eram outros. Mesmo com gastança sem limites, não há como reeditar essa marca, muito menos com a repaginação de programas de testado insucesso. Melhor seria engatar uma primeira e tentar um Lula 3 sem marcha à ré. Governar até pode ser abrir estradas, mas em outro tipo de empreitada. Ainda resta tempo, mas não muito.
Mary Zaidan é jornalista