Francisco tem razão (por Cristovam Buarque)
Difícil que os milhões de europeus aceitem a imigração em massa de pobres não brancos, com cultura e religião diferentes
atualizado
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Antes mesmo da guerra civil na Síria, sabia-se que a desigualdade levaria milhões a tentarem cruzar o Mediterrâneo e a fronteira entre o México e os Estados Unidos, fugindo da pobreza, atraídos pela riqueza. A desigualdade exerce uma força e atração social tão forte quanto a gravidade na natureza. A imigração pode ser tolerada, como fez os Estados Unidos com os imigrantes europeus; pode ser enfrentada com leis e muros, mantendo equilíbrio artificial; ou com programas de longo prazo que façam a emigração desnecessária, graças à harmonização entre os dois lados da fronteira, como os Estados Unidos fizeram depois da Segunda Guerra, com o Plano Marshall.
Agora, a Europa e os Estados Unidos preferiram a repressão, mas o fluxo de imigrantes e o fracasso das políticas antimigratórias estão mostrando que o Papa Francisco tem razão quando diz que o Mar Mediterrâneo está mudando seu nome para Mar da Morte. Em dez anos, desde 2014, morreram 57 mil pessoas tentando atravessar fronteira para imigrar; destes, 30 mil no Mediterrâneo. O Papa poderia ter usado metáfora mais forte: “o Mediterrâneo está se transformando em forno crematório que usa água no lugar de gás para asfixiar os pobres do mundo em busca de emprego, renda, comida”.
A diferença com o nazismo é que os judeus eram cidadãos integrados, parte da elite, úteis à cultura europeia. O antisemitismo nazista, além de desumano e indecente, era estúpido, contra sua própria família europeia, seus empresários, professores, escritores, cientistas, apenas porque eram judeus. O antimigrantismo atual é igualmente desumano e indecente, mas tem uma lógica ao buscar proteger os direitos criados ao longo de séculos. Na Europa e nos Estados Unidos não cabem todos os pobres do mundo. Privilégios vindos da escravidão e do colonialismo, mas construídos também pela ação europeia reunindo, por mais de um século: educação de base com qualidade para todos, democracia, liberdade de opinião e empreendedora, ciência, tecnologia e valorização do trabalho.
Difícil que os milhões de europeus aceitem a imigração em massa de pobres não brancos, com cultura e religião diferentes, em disputa por emprego e renda. Para eles, trata-se de uma invasão a ser barrada em defesa de seus interesses e valores, mesmo usando métodos que se chocam com o humanismo que a própria Europa criou. Por isto, estas sociedades ricas serão cada vez mais levadas a tomar medidas de uma nova forma de nazismo: contra os estrangeiros pobres. A democracia interna romperá com o humanismo e promoverá a estratégia de construir muros, diques, barreiras, usar metralhadoras contra imigrantes, mesmo que morram do outro lado da fronteira. A riqueza não desumaniza, a desigualdade sim.
Se quer defender seus privilégios sem desumanizar-se, os europeus, os norte-americanos e os ricos do mundo precisam de políticas que no lugar de barrar a imigração pela força, faça a emigração desnecessária. No longo prazo, a quebra do desenvolvimento desigual entre regiões, graças a um sério e competente Novo Plano Marshall Global. No curto prazo, promover um programa Bolsa Família Internacional que transfira renda mínima suficiente para as famílias pobres sobreviverem em seus países, sem necessidade de emigrar.
Cristovam Buarque foi ministro, governador e senador