Fétidos poderes (por Mary Zaidan)
Cargos e dinheiro público são as únicas moedas que valem
atualizado
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As relações entre os poderes Executivo e Legislativo costumam ser pouco ou quase nada republicanas. Não raro, mal cheirosas. Por aqui, o toma lá dá cá começou ainda no Império e funciona a todo vapor desde a Velha República. O tempo passou, o mundo mudou, e as moedas continuam as mesmas: farta distribuição de cargos e de dinheiro público. É esse binômio podre e o poder que ele confere aos seus operadores que estão por trás de toda a celeuma envolvendo o acintoso orçamento secreto, a PEC da Transição, as mudanças na Lei das Estatais e a formação do novo governo.
Trata-se de uma quadrilha perversa. Antes mesmo de tomar posse, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva se viu refém do presidente da Câmara, Arthur Lira, que só se dispõe a votar a PEC da Transição já aprovada no Senado se as emendas do relator (RP9), conhecidas como orçamento secreto, não despedaçarem. Por sua vez, Lula retardou a formação do governo pressionando pela votação da PEC nas bases acordadas há uma semana com Lira, em troca de sua reeleição ao comando da Casa: R$ 145 bilhões extra-teto por dois anos.
Temendo a derrubada, pelo STF, da dinheirama sigilosa – R$ 19,5 bilhões só para 2023 -, com a qual compra a sua base de apoio, Lira atacou os cargos. De surpresa, orquestrou a votação de alterações na Lei das Estatais, entre elas a redução radical da quarentena – de três anos para 30 dias – para que políticos possam assumir postos de comando em empresas públicas e nas agências reguladoras, algo com potencial entre 600 e 700 cargos.
O movimento foi tão brusco e escancarado que o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, puxou o breque, postergando a inclusão das mudanças para 2023 e, claro, empunhando uma espada própria sobre a cabeça de Lula. Ressalte-se que o PT votou a favor do arranjo de Lira. Não só para facilitar a nomeação de Aloizio Mercadante ao BNDES, como disseram os mais apressados, mas para abrir o “cofre da governabilidade” via cargos nas empresas públicas – moeda dificultada pela Lei das Estatais.
O STF também fez das suas. Integrou-se à encrenca do orçamento secreto como parte, sugerindo alterações como se legislador fosse. Ao que parece, com a simpatia do presidente eleito. Depois de colher o placar de 5 x 4 pela inconstitucionalidade das RP9, a Corte suspendeu a votação na expectativa de que o Congresso apresentasse uma alternativa à excrescência criada em conjunto pelo Parlamento e pelo governo Jair Bolsonaro.
Câmara e Senado nem esconderam a existência de um acordo prévio com integrantes do Supremo, algo para lá de impróprio. Na velocidade da luz votaram, na sexta-feira, uma resolução para “consertar” as emendas do relator, que desde sempre todos eles sabiam ser inconstitucionais. Produziram um frankenstein, que corrige parcialmente a falta de transparência, distribui emendas para um número maior de parlamentares, mas sem isonomia, e oficializa os presidentes das duas casas e líderes partidários como executores orçamentários.
Coisa sem pé nem cabeça.
Imaginem, por exemplo, se a deputada Carla Zambelli, a atiradora dos Jardins, virar líder do PL em 2023 e se tornar controladora do maior butim de emendas do Congresso.
Como de hábito na política brasileira, remenda-se um erro com outro erro. Desta vez, com chances de ser referendado pelo STF. Se isso se confirmar na votação desta segunda-feira, teremos um fato gravíssimo: o aval do Supremo a uma flagrante inconstitucionalidade, oficializando o balcão de negócios que rege as relações entre os poderes.
O resultado no STF é aguardado com ansiedade, mas Câmara e Senado certamente têm outras ideias fedorentas caso sofram revezes. Nas mãos, Pacheco tem a Lei das Estatais, Lira, a PEC da Transição. Pelo novo arranjo, ambos detêm 15% do orçamento secreto – dinheiro dos impostos dos brasileiros. Nada menos de R$ 1,7 bilhão para cada um deles fazer o que bem (ou mal) quiser. São moedas de troca, toleradas como promissórias de governabilidade, mas que perpetuam a podridão da política e empobrecem ainda mais o país.
Mary Zaidan é jornalista