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Fernando, o mágico (por Gustavo Krause)

“Não vai haver congelamento; não vai haver confisco, não vai haver mágica, repetia à exaustão, o então Ministro da Fazenda, FHC

atualizado

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Este artigo foi publicado no Correio Brasiliense em 03.03.1994, terceiro dia de vigência da Unidade Real de Valor (URV). Na época, exercia o mandato de Deputado Federal após ocupar, por setenta e cinco dias, o cargo de Ministro da Fazenda do Governo Itamar Franco. Paralelamente, fui Adjunto do relator da Revisão Constitucional, Deputado Nelson Jobim, em 1993.

Segue o artigo na íntegra.

“Não vai haver congelamento; não vai haver confisco, não vai haver mágica, repetia à exaustão, o então Ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso.

Pois não é que houve mágica! Uma só, não. Muitas. A primeira foi transformar a loquacidade presidencial sobre temas econômicos em silêncio obsequioso.

A segunda foi exercer funções de primeiro-ministro em governo presidencialista.

A terceira foi manter o êxtase solidário da mídia com a lábia de sociólogo.

A quarta foi entrar pela porta dos fundos (as disposições transitórias) de uma Revisão Constitucional, mal-amada pelo governo, e sair pela porta da frente (quem sabe, partidária, que vá do centro-direita ao centro-esquerda) carregando um balaio de US$ 15 bilhões para detonar em nome do déficit zero.

A quinta foi jogar no caldeirão fervente ideias puquianas, uspianas com sabor apurado em Harvard, Yale, Chicago ou Massachusetts; colocar na mesma panela temperos ortodoxos e heterodoxos misturados a cacoetes liberais e sociais-democratas; depois, adicionar cacos de planos fracassados, apimentados por frustrações e ressentimentos, para, como mestre-cuca da feitiçaria, mexer a poção mágica e pronunciar a frase abreq as hâbra e … pronto, nasceu o plano! Pasmem, um plano coerente e inteligente. Vamos ao teste simples do certo e do errado:

1) A formulação do plano não foi democrática. Meia dúzia de assessores, reunidos em aparelho secreto, decidiram, na porrinha, a sorte dos poupadores. Certo ou errado? Errado. Ponto para o Ministro.

2) O plano não quebrou contratos e, por consequência, não feriu a ordem jurídica. Certo ou errado? Certo. Ponto para o Ministro.

3) O plano agrediu as leis do mercado ao utilizar o mecanismo do congelamento de preços. Certo ou errado? Errado. Ponto para o Ministro.

4) O plano produziu um exército de perdedores e um punhado de ganhadores. Certo ou errado? Errado. Ponto para o Ministro.

5) O plano foi anunciado com fanfarras e bravatas do tipo “tem que dar certo” ou “é a última bala para matar a inflação”. E sua gestão depende exclusivamente do aparelho do Estado sob o comando clarividente de um super-homem. Certo ou errado? Errado. Ponto para o Ministro.

Como se vê, o plano pouco tem a ver com a lógica de outras experiências estabilizadoras. Mais interessante se mostra a diferença ao examinar a peça da transição entre as moedas, cujo artista principal é a tal URV.

URV mais parece nome de remédio milagroso para curar impotência. ‘Tome dois comprimidos de URV, antes da refeição e viva com satisfação’, diria a publicidade, em rima infeliz. Não é remédio para os fracassos da libido, mas tem algo de sensual. Lembra curvas. Formas redondas. Aliás, nada mais adequado do que esta associação de ideias no exacerbado clima afrodisíaco de Brasília nos últimos tempos. Mas não é só associação de ideias. A URV tem um quê de fêmea. No jogo da economia, não obriga, convida. Não impõe, seduz. Ninguém é obrigado a transar com a URV. Porém, esta rejeição vai custar caro no futuro. Por conta deste apelo, a URV entrou em cena e deixou o deputado Paulo Paim arriado dos quatro pneus. Democratizou a indexação e transformou o sonho do salário em dólar em realidade registrada no contra-cheque do trabalhador.

A URV chega faceira, encanta e vai embora, não sem antes exercer uma propriedade terapêutica para os desvios coletivos de conduta: apagar a memória inflacionária e criar as bases de uma consciência de estabilidade.

Pois é, senhores comerciantes, industriais, banqueiros, investidores, especuladores, proprietários, inquilinos: façam o jogo em URV!

Depois, a vítima pode ser você.

E a eficácia do plano? Da parte do governo, depende de duas condições. A primeira é partir para aprofundar as reformas estruturais. A Revisão está aí. Nada parece consistente e duradouro em matéria de ajuste se continuam intacto o mesmo Estado, a mesma federação, o mesmo sistema tributário, a mesma ordem econômica, o mesmo sistema de previdência. Esta é a terceira perna do ajuste, sem o que legitima a suspeita política de que o plano não foi feito para o país, nem para o futuro.

A segunda condição: o ministro formulador e o ministro gestor são filhos unigênitos das circunstâncias. Ministro candidato não rima com candidato e estadista. A conclusão é cruel. Nenhuma restrição à legítima aspiração do Ministro, de carreira limpa e brilhante, a ser Presidente da República. Qualquer fórmula que concilie suas circunstâncias, transforma FHC de mágico em bruxo, personalidade que estará mais para as ‘Brumas de Avalon’ do que para os compêndios da História do Brasil”.

 

Gustavo Krause foi ministro da Fazenda 

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