Estado soberano e emergência climática em debate (por Felipe Sampaio)
O clima é um fator que atravessa as fronteiras
atualizado
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Foi-se o tempo em que o princípio da soberania nacional se restringia à defesa do território e do governo. As ameaças externas não se confundiam com os problemas domésticos. Tudo delimitado em fronteiras protegidas por forças militares. Vindo de fora, só entrava quem o Estado deixasse (e vindo de dentro, só persistia a mazela que o Estado quisesse).
Com a consolidação das democracias modernas e a complexidade dos desafios atuais, a soberania alcança um sentido amplo que abrange a atuação do Estado em suas diversas responsabilidades, desde a preservação ambiental até as garantias democráticas, passando pela equidade social.
O Antropoceno acabou com a definição confortável do que seja o Estado soberano. A partir do século XVIII, como a decolagem da economia de base industrial, a pegada ambiental humana gradativamente pisoteou ecossistemas e, com eles, as fronteiras.
Mesmo quem pensava que a globalização financeira já transpassara de morte a noção de ‘interesse nacional’, ficou perplexo com os efeitos colaterais ainda mais graves do aquecimento global, pior consequência produzida até hoje pela ação humana.
Na dimensão externa, até então, a guerra representava o mais próximo que se pode chegar de um cataclisma. No âmbito interno, a desigualdade social era, ao mesmo tempo, maior produto e insumo da obsessão pelo lucro.
É bem verdade que, desde sempre, o ser humano consumiu biomas, notadamente em busca de madeira, principal fonte de energia e matéria prima por muito tempo. Contudo, o advento da máquina a vapor, a explosão das escalas de produção e o abuso de fontes energéticas não renováveis deram à humanidade o poder de alterar a temperatura média da Terra.
A mudança climática constitui um fenômeno que confere à definição de Estado soberano uma imagem cada vez mais difusa, melhor dizendo, multifacetada. Algumas provocações relevantes para esse debate estão na publicação “Conexões e Diálogos para Convergir” (www.soberaniaeclima.org.br), organizado por Mariana Plum e Ana Miraglia, a partir de discussões com especialistas e autoridades das áreas de defesa e meio ambiente.
Logo de início, o estudo emoldura com clareza a questão. “Enquanto a soberania é um conceito restrito a um território e interesses delimitados – uma cultura, um povo, seus recursos, e sua história – o clima é um fator que atravessa as fronteiras e, portanto, um tema de escala mundial”.
Em seguida, sugere aprofundar a discussão sobre a relação entre mudanças climáticas e políticas de defesa, sem descuidar do diálogo com os organismos multilaterais e o terceiro setor.
Mais adiante, recomenda rigor no enfrentamento dos crimes ambientais e constrangimento do consumo dos produtos dessas ilegalidades. No mesmo sentido, propõe a inclusão de ecossistemas, como a Amazônia e os oceanos, na definição de infraestruturas críticas, merecedoras de proteção e cuidado em nível estratégico.
O estudo atenta ainda para a produção científica e dá destaque especial à promoção da justiça climática, para evitar o aprofundamento da desigualdade social que impacta em primeiro lugar as populações mais vulneráveis (com repercussões até sobre a democracia).
O texto finaliza ressaltando a importância de “uma política externa equilibrada, sem alinhamentos automáticos de qualquer linha ideológica e com pragmatismo na defesa dos interesses nacionais”.
A receita para um Estado brasileiro soberano e democrático, em tempos de caos climático iminente, está dada.
Felipe Sampaio: foi assessor especial dos ministros da Defesa (2016-2017) e da Segurança Pública (2018); ex-secretário executivo de Segurança Urbana do Recife; colabora com o Centro Soberania e Clima.