Entre a justiça e o filho, Biden escolheu o filho (Pedro Adão e Silva)
Acentua-se o cinismo dos norte-americanos face às instituições e deita-se fora a réstia de superioridade moral do campo democrata
atualizado
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Joe Biden carrega um drama há décadas. No final do seu mandato, com o espectro do regresso de Trump à Casa Branca, ao indultar o filho, optou por transformar esse drama pessoal numa tragédia política. Não surpreende, considerando o clima de dissolução que arrasta a democracia norte-americana.
Vale a pena recordar. Quando há 52 anos Joe Biden foi eleito senador do Delaware, a sua mulher e os três filhos tiveram um brutal acidente de viação. A mulher e a filha de um ano tiveram morte imediata, os dois rapazes, Beau e Hunter, estiveram meses hospitalizados e sobreviveram. Na altura, ao contrário dos restantes membros do Senado, Biden fez o juramento de tomada de posse no hospital, junto à cama dos filhos, e, ao longo dos 36 anos como senador, manteve-se ao lado dos rapazes, apanhando diariamente o comboio do Delaware para D.C. Mais tarde, em 2015, num comovente discurso em Yale já como vice-presidente, não escondeu, a sua circunstância pessoal: “A ligação incrível que tenho com os meus filhos é uma dádiva, não sei se a teria tido não fora aquilo por que passei.” A tragédia deu a Biden consciência da sua “primeira obrigação”: “Ao focar-me nos meus filhos, encontrei a minha redenção.”
Biden voltou a casar, teve uma filha e os rapazes cresceram: Beau com uma carreira de sucesso, enveredando a certa altura pela política; Hunter com um historial de consumos, dependências e ilicitudes várias. Entretanto, Beau morreu aos 46 anos, levado por um câncer fulminante no cérebro. Especula-se que terá sido nesse momento que Biden decidiu não suceder a Obama como candidato presidencial.
Há outro lado da história mais conhecido. Os democratas escolheram Hillary Clinton, que foi derrotada por Trump, e, em 2020, Biden decidiu concorrer às primárias e venceu Trump nas presidenciais. Este ano, perante a perda de capacidades, abdicou da recandidatura, abrindo caminho a Kamala Harris, que viria a ser derrotada. Ao longo de todo este tempo, Biden foi sempre claro: em momento algum utilizaria os poderes presidenciais para proteger o filho Hunter. Afinal, confiava na justiça. Dito e não feito. Esta semana, indultou o filho de todas as acusações, protegendo-o dos crimes de que é acusado, mas também de qualquer outro ilícito que eventualmente tenha cometido na última década. A justificação é que Hunter terá sido tratado de forma diferente pela justiça, por motivos políticos.
Estamos face a um novo consenso de Washington: Biden e Trump concordam que há uma irremediável politização da justiça. Mesmo sendo diferente indultar parceiros de negócios e um filho, a consequência política é inequívoca – acentua-se o cinismo dos norte-americanos face às instituições e deita-se fora a réstia de superioridade moral do campo democrata na crítica à relação de Trump com a justiça. Agora, o presidente eleito terá campo aberto para praticar as ignomínias de que faz modo de vida.
É conhecida a forma como Albert Camus lidou com o dilema moral resultante de apoiar os nacionalistas argelinos – o país onde nasceu – e tolerar o terrorismo independentista, que ameaçava os pieds-noirs de Argel, como a sua mãe. Confrontado com as críticas, Camus sentenciou: “Eu creio na justiça, mas defenderei a minha mãe antes da justiça.” No tal discurso em Yale, Biden confessou: “A verdadeira razão pela qual regressava a casa todas as noites, vindo de Washington, é porque precisava mais dos meus filhos do que eles precisavam de mim.” Num gesto demasiado humano, Biden escolheu, de novo, os seus filhos. Pelo caminho, perdeu a fé na democracia na América. Ele e nós, com a sua decisão.
(Transcrito do PÚBLICO)