Entre a infância do brincar e do celular (por Gustavo Krause)
Na era da informação abundante e veloz, a gente se sente quase que obrigado a ter opinião e falar sobre tudo
atualizado
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Na era da informação abundante e veloz, a gente se sente quase que obrigado a ter opinião e falar sobre os mais diversificados e complexos temas. Uma tolice. Claro que há uma diferença conceitual entre informação e conhecimento. Mas, em qualquer hipótese, minha ignorância é tamanha que somente a curiosidade justifica escrever dois dedos de prosa.
No caso, foi o impacto da leitura “ansiosa” (sem pretensão de trocadilho) do livro de autoria do escritor, pesquisador, psicólogo social norte-americano, Jonathan Haidt , A geração ansiosa – Como a infância hiperconectada está causando uma epidemia de transtornos mentais (Companhia das Letras. Julho de 2024).
Haidt, autor de A mente moralista (2020) e A hipótese da felicidade: encontrando a verdade moderna na sabedoria antiga (2022) diz, na introdução Crescendo em Marte: “Este livro conta a história da geração nascida depois de 1995, popularmente conhecida como geração Z, aquela que se segue aos millennials (nascidos entre 1981 e 1995)”.
Embora reconheça as divergências dos recortes temporais (ele próprio admite 1996 e menciona referências, segundo as quais, crianças nascidas depois de 2010 já fazem parte da geração alfa), o autor utiliza o critério das mudanças tecnológicas ao afirmar: “As pessoas mais velhas da geração Z entraram na puberdade por volta de 2009 quando várias tendências tecnológicas convergiram: a rápida expansão da banda larga na década de 2000, a chegada do iPhone em 2007 e a nova era de redes hiperviralizadas – iniciada em 2009 com os botões de ‘curtir’, e ‘compartilhar (ou ‘retuitar’) que transformaram a dinâmica social do mundo online”.
Mais adiante, acrescenta que a geração Z passou pela puberdade com um portal no bolso “que os afastava das pessoas próximas e os atraía para um universo alternativo empolgante, viciante, instável e – como vou mostrar – inadequado a crianças e adolescentes”. A partir dessa constatação, o autor se reporta aos dois conceitos centrais da sua obra: “a infância baseada no brincar” que, no fim dos anos 1980, transitou para uma “infância baseada no celular”, transição concluída em meados da década de 2010.
Curiosamente, o projeto original do livro tinha como objetivo avaliar os efeitos nocivos das redes sociais à democracia nos Estado Unidos. No entanto, Haidt percebeu que estava diante de desafio muito maior do que uma história das redes sociais, mas “uma história da transformação radical da infância em algo não humano: uma existência baseada no celular”.
Neste sentido, o livro está dividido em quatro partes: I. A onda gigante; II. O pano de fundo: o declínio da infância baseada no brincar; III. A grande reconfiguração: a ascensão da infância baseada no celular; IV. Ações coletivas para uma infância mais saudável.
A obra percorre um caminho longo, denso, ancorado em pesquisas, na abordagem teórica de cientista social, professor e na condição de pai de dois adolescentes, condição esta que levou o autor assumir o papel de expor a alarmante progressão dos transtornos mentais em meninos e meninas bem como assumir o risco de defender propostas para enfrentar a gravidade do problema.
De modo a caber nos estreitos limites de um artigo, segue-se o esforço de síntese pautado nos quatro prejuízos fundamentais por conta do uso desmedido das redes sociais pela geração Z: privação social, privação de sono, atenção fragmentada e vício. Os dados referentes à crescente tendência dos transtornos mentais (ansiedade, depressão, TDAH, bipolaridade, anorexia, abuso de substâncias viciantes, esquizofrenia), em universitários americanos (FONTE; American College Health Association), é assustadora.
Porém, não se trata de um fenômeno localizado. Está disseminado mundo afora e dentro de nossas famílias. Mesmo reconhecendo controvérsias e erros, o autor propõe “quatro reformas tão importantes e em que tenho tamanha confiança que vou chamá-las de fundamentais: nada de smartphone antes do nono ano, dando aos filhos apenas celulares básicos; nada de redes sociais antes dos dezesseis; nada de celular na escola, durante todo período de aula, desde o ensino fundamental até o médio; muito mais brincar não supervisionado e independência na infância”.
O que parece simples diante de um desafio tão complexo não levaria o autor a um erro tão primário até porque a base das reformas é uma construção coletiva e solidária. Então como pôr em prática essas medidas? “Encerro com duas sugestões: fale e junte-se, propõe Haidt, acrescentando: se você acha que a infância baseada no celular é ruim para as crianças e quer o retorno da infância baseada no brincar, diga isso […] se você é pai ou mãe, junte-se a outros […] Há muitas organizações excelentes que unem pais em torno dessa causa”.
De fato, a dimensão do livro vai além de famílias, escolas, instituições que cuidam de crianças ou se importam com elas na certeira definição do próprio autor: “Geração ansiosa é sobre restabelecer uma vida humana para os seres humanos de todas as gerações”.
Gustavo Krause foi ministro da Fazenda