Em crise por Ucrânia, Moscou recebe Bolsonaro (por Marcos Magalhães)
A viagem de Bolsonaro a Moscou – caso não seja cancelada – pode coincidir com a invasão russa da Ucrânia. Seria o momento ideal?
atualizado
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As famílias dos diplomatas norte-americanos em Kiev estão neste momento fazendo as malas. O Departamento de Estado determinou que todas deixem imediatamente a Ucrânia, que pode ser invadida nos próximos dias por tropas russas.
O presidente Jair Bolsonaro também pedirá em breve que arrumem as suas malas. Dentro de poucas semanas, ele parte para Moscou. Ele anunciou ter aceitado convite do presidente Vladimir Putin para uma visita oficial.
O deslocamento de tropas russas para a fronteira com a Ucrânia, ordenado por Putin, deixou o Ocidente em alerta máximo. Especialmente depois de o governo britânico haver denunciado que o presidente russo pode optar por uma guerra relâmpago para tomar Kiev.
A viagem de Bolsonaro a Moscou – caso não seja cancelada a tempo – pode vir a coincidir com a invasão russa da Ucrânia. Seria o momento ideal para o governo brasileiro demonstrar tanto apreço pela Rússia?
Na verdade, existe aí uma estranha coincidência de datas. A possível invasão da Ucrânia é um tema ligado à geopolítica da Europa. Trata-se de um movimento da Rússia para reconquistar parte de sua antiga esfera de influência. A viagem de Bolsonaro tem um objetivo mais prosaico: recuperar antigos eleitores.
Otan
A pressão russa sobre Kiev destina-se a evitar que a Ucrânia venha a aderir à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), a grande aliança militar ocidental. Desde a queda da União Soviética, Moscou perdeu o controle direto sobre vasta área da Europa Oriental que, de certa forma, permitia a formação de um amplo arco de defesa da capital russa.
Após o fim da União Soviética, dissolveu-se também o antigo Pacto de Varsóvia, o equivalente militar do lado oriental. Desde então, vários países da antiga esfera de influência russa aderiram à Otan ou à União Europeia – ou a ambos.
Foi o caso de Polônia, Letônia, Lituânia, Estônia, República Tcheca, Bulgária, Hungria, Eslováquia, Albânia e Romênia. Até aí, Moscou aceitou contrariada, mas aceitou. Mas a Ucrânia? Esta seria muito perto de Moscou, atalho para uma invasão de tropas estrangeiras.
Há oito anos, depois de uma intensa crise interna na Ucrânia, que levou ao poder facções políticas anti-russas, Putin decidiu anexar a Crimeia, uma península do então território da Ucrânia diante do Mar Negro, onde aproximadamente 60% dos habitantes são etnicamente russos.
Na verdade, a Crimeia havia sido parte da Rússia por dois séculos, até ser transferida à então República Soviética da Ucrânia pelo então presidente Nikita Kruschev em 1954. O Ocidente impôs sanções aos russos após a invasão da Crimeia. E promete adotar novas sanções caso ocorra mesmo a invasão da Ucrânia.
Ao mesmo tempo, cresce a temperatura política. A Rússia acusa os países ocidentais de reagir com “histeria” à movimentação de suas tropas. Enquanto isso, a Otan anuncia o reforço de suas posições no Leste Europeu. E o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, já analisa o envio à região de tropas, navios e aviões.
Há poucos dias, antes de o primeiro-ministro Boris Johnsson alertar para a possibilidade de um ataque relâmpago, o serviço secreto britânico já havia indicado a intenção russa de instalar um governo fantoche em Kiev.
Família
As próximas semanas mostrarão se Moscou fala sério ao ameaçar a Ucrânia. Também revelarão a extensão do comprometimento de países ocidentais com a defesa da soberania de Kiev. Enquanto isso, a tensão política alcança níveis poucas vezes percebidos desde o fim da Guerra Fria.
Ou seja, as relações entre Moscou e as principais capitais ocidentais estão gélidas como o inverno na capital russa. Mas neste momento alguém está pronto para apertar a mão de Vladimir Putin: o presidente brasileiro Jair Bolsonaro.
Ele não dá muita bola para a pressão sobre Moscou. Há poucos dias, ele disse que o Itamaraty está acompanhando a questão e que deseja apenas reforçar uma relação de parceria.
“Sabemos do problema de algum país com a Rússia, sabemos disso”, disse Bolsonaro em entrevista no Palácio do Planalto. “A Rússia é parceiro nosso, temos compra de fertilizantes, entre outras coisas. Então, é uma viagem que interessa para nós e para eles”.
Pode ser. Mas, se a visita parece inoportuna, o seu timing está relacionado, na verdade, a questões internas. Às vésperas da campanha eleitoral, Bolsonaro quer demonstrar que não enfrenta isolamento internacional. Para isso, na mesma viagem, uniu Rússia, Hungria e Polônia. Ao mesmo tempo, acena aos conservadores.
O atual governo da Hungria orgulha-se de se declarar uma “democracia iliberal”. Persegue a imprensa e os imigrantes. A Polônia tem uma liderança extremamente conservadora, e muitos jovens homossexuais, perseguidos no próprio país, têm optado pela emigração.
A Rússia, por sua vez, aderiu no final do ano passado ao chamado Consenso de Genebra, uma declaração internacional contra o direito ao aborto.
Segundo nota oficial do Itamaraty de outubro de 2020, “o governo brasileiro orgulha-se de fazer parte” do grupo. A declaração visa, nas palavras oficiais, à “promoção dos direitos humanos das mulheres e ao fortalecimento do papel da família, temas de grande importância para o Brasil”.
Ou seja, Moscou, definida na época do regime militar brasileiro como sede da “ameaça comunista internacional”, tornou-se agora aliada de governos ultraconservadores, como o de Jair Bolsonaro. E será escala de uma nascente campanha eleitoral.
O candidato à reeleição vai à gélida e politicamente isolada Rússia, às vésperas de uma possível invasão da Ucrânia, para reafirmar as suas próprias credenciais conservadoras e exibi-las a eleitores que pretende reconquistar. Moscou já atraiu gente diferente.